segunda-feira, maio 11, 2015

Memorabilia diplomatica (XXXII) - Medicina diplomática


Há dias, a propósito do curso que estou a orientar para preparar os candidatos ao ingresso na carreira diplomática, alguém ficou surpreendido quando revelei que são aceites a concurso os titulares de qualquer cursos universitário. Questão é que as pessoas sejam capazes de ultrapassar as várias provas, desde um teste de cultura geral a exames exigentes de português e inglês, seguidos de provas sobre História Diplomática, Direito Internacional e Economia Política, com as questões europeias a assumirem natural destaque. O meu interlocutor ficou mesmo surpreendido quando lhe disse, não sem um certo gozo por esse ecletismo, que há hoje na carreira pelo menos um arquiteto e um médico. "Um médico?" e abriu a boca de espanto!

Foi a propósito disso que me veio à memória uma história divertida, passada algures no mundo, há já muitos anos, com um diplomata cuja nacionalidade não quero revelar e que, não sendo ele próprio médico, nem sequer sendo um evidente hipocondríaco, tinha sobre as questões de saúde algumas teorias que se situavam um pouco à margem da medicina convencional, e desde já aviso que isto é um "understatement". Para além de afirmar, com grande convicção, que o champanhe, "um bom champanhe", tinha efeitos muito positivos na cura do cancro, debitava sempre teorias muito pouco usuais, muito pessoais, sobre o efeito de certos produtos em certas doenças.

Era um homem só, solteiro, à época bem mais velho do que nós (já morreu há muito), uma pessoa com uma cordialidade educada que atenuava alguma distância que o seu modo de estar algo formal criava nas pessoas que com ele conviviam. Ouviamo-lo com delicada atenção e só aqui ou ali, quando a extrema bizarria das teorias nos fazia passar do sério, é que deixávamos escapar um comentário menos concordante. Um dia, porém, foi um pouco longe demais.

Em casa desse diplomata, um grupo estava a bebericar uma taça de champanhe - sempre o champanhe!, para ele a mezinha com alargadas virtualidades medicinais - quando alguém que estava presente referiu que estava um pouco constipado, fruto do clima desse país longínquo, que andava um tanto instável.

Nesse instante, o nosso homem, com um ar seguro, saiu-se com esta frase:

- Isso é um problema de intestinos! O champanhe ajuda muito a acabar com as constipações.

Lá vinha o champanhe, outra vez! Todos nós, seus convidados, olhámo-lo, surpreendidos, em particular um médico meu amigo, que ali estava pela primeira vez e que esboçou um pequeno comentário distanciador da estranha interpretação da sintomatologia da constipação que acabara de ouvir. Mas o homem não se desarmou.

- Ah! O meu caro amigo é médico! Desculpe, esqueci-me disso! É portanto um adepto das teorias da medicina moderna. Está no seu papel, é evidente! O que eu disse tem a ver com outras áreas da ciência que a sua medicina não acolhe, porque não dão jeito, não fazem o jogo dos laboratórios que nos encharcam de medicamentos e, claro!, que têm de fazer o seu negócio. Percebo bem que não possa sair dessa visão convencional da medicina...

Disse isso com um ar condescendente. E eu olhei para o meu amigo, temeroso de que se não contivesse perante o comentário, que tinha algo de provocatório. Mas ele manteve-se educadamente calmo. A brincar, a brincar, o jantar ainda não tinha sido servido...

O diplomata, "médico" por convicção, dispôs-se a dar uma explicação mais detalhada da sua teoria e, voltando-se de novo para o verdadeiro médico presente, deixou cair uma interrogação críptica:

- O meu amigo não subscreve, estou certo, o "princípio do alambique", ligado às constipações, pois não?

O médico "a sério" fez uma cara de surpresa. O "princípio do alambique"? Terá mesmo, por um instante, inquirido a si mesmo se lhe não estava a falhar alguma tese fundamental da medicina. E, perplexo ao limite, acabou por confessar que não, que não conhecia o "princípio do alambique".

Foi o que o nosso diplomata quis ouvir. Ganho já o terreno, recolocou-se no centro diretor da conversa e, com assumida generosidade, deu-nos a conhecer a "verdade":

- Ora bem! Como os meus amigos seguramente sabem, dentro de nós persiste, fruto das deficiências de "limpeza" do nosso sistema digestivo, uma certa percentagem de resíduos - as senhoras presentes que me desculpem o termo, mas trata-se de "excrementos" - que se vão acumulando ao longo de meses nos intestinos. Essa massa, se não for expelida a tempo, chega a um ponto em que começa a fermentar e, ao fazê-lo, decanta uns eflúvios. Esses gazes, que a fermentação tornou mais quentes do que o resto do corpo, começam a fazer um percurso ascendente através dos tecidos. Como todos sabem da escola, "o ar quente sobe". À passagem pelos brônquios e pela garganta, por exemplo, provocam inflamações - daí a tosse e as dores de garganta. Mas esses eflúvios vão continuar a subir e chegam à cabeça. O contacto com o cérebro é tudo menos pacífico e pode então provocar dores de cabeça e estados febris.

A sala estava em êxtase com a sofisticação desta delirante teoria. O meu amigo médico olhava para o diplomata sem saber bem o que dizer. Recostou-se no sofá, como que exausto com o que acabara de ouvir. Eu fixava-o para tentar que a "tampa" lhe não saltasse... Mas o melhor estava para vir.

- Mas eu ainda não acabei!, ameaçou o prolixo diplomata, enlevado na lógica irrecusável da sua teoria. Ora esse eflúvios, ao chegarem à cabeça, entram precisamente em contacto com uma das poucas partes do nosso corpo que, geralmente não está coberta, não é verdade? E, então, o que é que acontece? É aqui que entra o princípio do alambique. Como esses eflúvios entram em contacto com uma superfície mais fria, têm tendência a condensar, tal como acontece nos alambiques. E, como se sabe, a condensação converte os gases em líquido, o qual, naturalmente, precisa de escoar. E por onde escoa? Pelo nariz, claro! É por essa simples razão que, quando nos constipamos, há secreções líquidas que nos saem pelo nariz. Nunca ouviram recomendar às pessoas constipadas para manterem a cabeça protegida por um chapéu ou por uma boina? É precisamente por isso: quem andar com a cabeça quente, tem menos tendência a ter vontade de assoar-se.

O silêncio que se seguiu a esta laboriosa e completa explicação foi talvez excessivamente pesado. Nenhum de nós ousava arriscar uma palavra, pelo respeito que o homem nos merecia, perante a bizarria da teoria. Eu olhava, em controlado pânico, para o meu amigo médico, que pressentia prestes a explodir, ou de riso ou de raiva. Alguns anos de diplomacia ensinaram-me a dizer coisas um pouco "redondas", para sustentar precisamente este tipo de situações:

- Muito interessante! Mas há certeza de que isso é mesmo assim? Como é que se explicam, por exemplo, as sinusites, que provocam um forte corrimento nasal?

O que eu fui dizer! As sinusites, estava bem de ver, não eram nem mais nem menos do que uma inflamação produzida no caminho ascendente dos eflúvios em direção à cabeça. Tudo estava explicado!

A conversa acabou, para grande alívio dos presentes, com a chamada urgente para a mesa, onde havia o risco de um souflé poder baixar, se perdêssemos mais tempo. Ou ganhássemos, tudo dependente da credulidade de cada um.

Já longe do local do jantar, trocadas umas boas gargalhadas sobre o momento "médico" que o havia antecedido, alguém se lembrou: "pensando melhor, a expressão inglesa "constipation", para significar problemas instestinais, é bem capaz de vir daí..."

(Dedico este texto ao meu querido amigo Manuel Serra, médico e estóico auditor da historieta que aqui lhes contei. Acho que ele vai divertir-se ao relembrá-la.)   

E se a História acontece?


A retórica da História está cheia de momentos “históricos”, passe o pleonasmo. Alguns acabam por sê-lo, outros desaparecem na espuma dos dias seguintes.

No Dia da Europa, alguém me perguntava se, na data em que foi assinado o Tratado da adesão às instituições europeias, em 1985, eu havia tido a consciência desse dia ser o marco fundamental que acabou por ser, no percurso da nossa modernidade como país. Nunca me tinha colocado a questão. E, olhando-me à época, tive modestamente que admitir que não: com certeza que achei muito importante o momento, mas não tive a presciência para aquilatar do profundo impacto que a adesão iria ter no futuro de todos nós. O que também se justifica pelo facto das Comunidades Europeias de então estarem a “anos-luz” da densidade de políticas da atual União, em cuja construção, convém lembrar, nem sempre fomos os atores de somenos que hoje somos.

Vem isto a propósito das recentes eleições no Reino Unido. Da surpresa e da magnitude do resultado todos falaram. Sobre as incógnitas que dele podem vir a resultar vários já elaboraram. E, no entanto, pode vir a dar-se o caso da data de 7 de maio de 2015 acabar por ficar marcada como “histórica” nos anais europeus. E não necessariamente pelas melhores razões.

Há já algum tempo, David Cameron, o reconfirmado chefe do governo britânico, anunciou que, se fosse reeleito, organizaria, em 2017, um referendo nacional sobre a permanência do seu país na União Europeia. Foi um “truque” para apaziguar o endémico euroceticismo, e mesmo anti-europeísmo, que sempre pairou sobre o Reino Unido, que tinha dado alento à criação do eurofóbico UKIP.

O Reino Unido não é membro do euro, não faz parte da zona Schengen e auto-exclui-se recorrentemente de várias políticas da UE. No Conselho de Segurança da ONU (tal como a França) recusa-se a aplicar a solidariedade europeia no concerto antecipado das decisões. Sem a menor dúvida, é, desde sempre, um dos maiores beneficiários do Mercado Interno europeu, recebe fatias importantes das ajudas comunitárias, quer em fundos estruturais (para as suas regiões mais pobres), quer através da Política Agrícola Comum. Graças à genialidade negocial de Margareth Thatcher, continua a usufruir de um anacrónico “rebate” – um cheque dado pela União, a pretexto de uma mais do que duvidosa compensação financeira, que os restantes Estados são obrigados ciclicamente a aceitar, para comprar a “pax britannica” nos corredores de Bruxelas.

Preparemo-nos agora para assistir a uma espécie de pouco subtil chantagem. Cameron já deixou claro que, para “vender” internamente o “sim” – que não duvido ser do interesse objetivo do resto da Europa -, vai ter de obter cedências em termos de “devolution”, isto é, vai querer repatriar para a Câmara dos Comuns alguns dos poderes com que em Bruxelas se tem construído a unidade europeia. Com esta atitude, alguns outros países, onde o euroceticismo faz hoje também o seu curso, procurarão aproveitar o “comboio” para incluir outras reivindicações idênticas. Não nos deveremos espantar se, nos próximos tempos, vier a gerar-se uma tentativa de desmantelamento de algum do acervo que fez o sucesso do projeto europeu. A começar pela livre circulação no espaço europeu, questão da maior importância para um país como Portugal, que tem cada vez mais uma parte de si próprio espalhado pela Europa.

Mas não é tudo. Para tornar o 7 de maio numa data histórica, poderá estar aí, ao virar da esquina, a independência da Escócia. E então, bom dia, Catalunha!

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

domingo, maio 10, 2015

Comidas & bebidas


Ontem, deixei no meu blogue "satélite" sobre restaurantes uma sugestão que deve agradar ao meus amigos que passam o tempo a queixar-se de que só lhes dou notas sobre locais mais ou menos sofisticados e carotes. Desta vez, trata-se de um lugar simples, acolhedor e com uma excecional relação qualidade/preço.

Consultem o "Ponto Come"! 

A bandeiras da vitória


O final da Segunda Guerra mundial, cujos 70 anos se comemoraram agora em várias partes do mundo, foi um grande momento histórico na vida europeia. 

Em Portugal, país europeu que, tal como a Espanha, foi poupado ao conflito, esse foi também um tempo de esperança. Com a vitória dos Aliados, criou-se em alguns a ideia de que as potências vencedoras poderiam forçar Salazar a uma democratização do regime. 

Foi uma ilusão breve. À paz das armas seguiu-se, quase de imediato, a Guerra Fria, a tensão Leste-Oeste tomou conta da Europa e os nossos democráticos "amigos de Peniche" decidiram - e tudo isso está hoje bem documentado - não exercer qualquer pressão para que o regime português se abrisse. Portugal não seria admitido nas Nações Unidas (o que só ocorreria uma década mais tarde) mas, no entanto, não deixaria de ter assento como membro fundador da NATO, para a defesa do "mundo livre" a que passou institucionalmente a pertencer, mas que não se aplicava no país.

"Livres" foram também as eleições legislativas desse ano de 1945. Melhor ainda: "tão livres como na livre Inglaterra", como hipocritamente afirmou com solenidade, na Assembleia Nacional, o déspota de Santa Comba. Como era de regra, só pôde concorrer uma única lista de deputados, pelo que a União Nacional - tal como ocorreria durante os 41 anos de vigência da Constituição da ditadura - ocupou de novo todos os assentos de S. Bento. Depois, foi o que se viu. Os subscritores das listas do Movimento de Unidade Democrática (MUD), que haviam tentado organizar-se para o sufrágio, foram perseguidos, acabaram demitidas da função pública dezenas de figuras eminentes da comunidade académica e um novo ciclo de forte repressão política abateu-se sobre o país. 

Para justificar o seu ziguezaguiar entre a Alemanha nazi e os Aliados, Salazar tinha crismado, ainda durante a fase final da guerra, o conceito de "neutralidade colaborante", qualificador do facto - que, aliás, ocorreria quer Portugal quisesse quer não - de ter aceite a concessão das facilidades militares nos Açores às forças aliadas. O cinismo não o impediria, contudo, de decretar três dias de luto nacional, por virtude da morte de Adolf Hitler.

Mas a verdadeira "neutralidade colaborante" foi aquela que o Reino Unido e os Estados Unidos (a França era, à época, um poder menos relevante) aplicaram à situação interna portuguesa. Campeões da ingerência, tal como a União Soviética, em vários espaços e países das zonas de influência ditada pela partilha do mundo que haviam decidido em Ialta, os Aliados revelaram-se hipocritamente "neutrais" face à ausência das liberdades (por cuja bandeira se tinham batido) em Portugal. E, por isso, acabaram como objetivos "colaborantes" com a ditadura, que demoraria três décadas mais a derrubar.

E, por falar em bandeiras, deixo uma fotografia que me é cara, porque curiosamente mostra a fachada da casa onde hoje resido. Trata-se da manifestação junto ao edifício que à, época, era a Embaixada britânica em Lisboa. Foi no dia subsequente à vitória aliada, faz hoje 70 anos. Nela poderão ser vistas os estandartes dos países vencedores da Segunda Guerra mundial. De todos? Não. Há uma bandeira que não podia ser exibida e, por essa razão, se notarem bem, há quem segure apenas um pau, sem pano... Adivinhe quem quiser!   

sábado, maio 09, 2015

Viva a greve dos pilotos!

Por muito que detestemos as razões de um qualquer grevista - seja desta cáfila egoísta de pilotos, seja dessa mafia que são os maquinistas da CP ou quaisquer outros oportunistas de igual laia -, por muito que a sua atitude prejudique os utentes, o erário da empresa ou qualquer outro interesse, a preservação do inalienável direito à greve, apenas atenuável pelo mecanismo legal dos serviços mínimos ou da requisição civil, terá sempre um preço muito "barato", porque esse é o preço da democracia. E essa não tem preço! Percebam bem isso, por favor.

Um novo Renascimento


Frequentemente, os cidadãos europeus tendem a esquecer que a ação política que sustenta a vida das suas instituições é apenas o modelo enquadrador de um projeto multidimensional de vida e civilização, fruto de um compromisso entre as diversas expressões nacionais de poder. Um projeto cuja sustentação depende da continuidade da adesão dos cidadãos a um imaginário que se renova no quotidiano, alimentado pela dinâmica do processo de construção europeia.

Porque se impõe mediaticamente, a coreografia dos atores políticos surge, muitas vezes, aos olhos da opinião pública, como uma espécie de substituto daquilo que é, na realidade, a essência desse projeto: os objetivos, os valores, as expetativas, isto é, a narrativa em torno de uma ideia de paz e desenvolvimento, interiorizada pelos cidadãos.

De um conceito mobilizador, que foi capaz de organizar institucionalmente a esperança e edificar um inigualável período de bem-estar e de apaziguamento de tensões, a Europa pareceu, nos últimos anos, ter perdido o elã coletivo que a motivou, surgindo mesmo, aos olhos de alguns, como o bode expiatório das suas frustrações e desencantos.

Em muitos casos, o espírito crítico abandonou a sua indispensável função promotora de alternativas para se situar para além da linha da preservação do modelo, às vezes contestando mesmo a validade da sua própria permanência no tempo.

A Europa e quem nela acredita não podem deixar vencer-se por um qualquer pessimismo, por um derrotismo de conjuntura que amorteça a vontade de garantir um futuro àquele que é, sem a menor dúvida, o maior e mais completo caso de sucesso, em toda a História, em matéria de cooperação internacional. Colocar em causa este fantástico adquirido seria uma imensa irresponsabilidade.

Mas o mero voluntarismo não é suficiente para garantir a vitória de uma ideia. Há que convocar para ela a vontade dos cidadãos, assegurar a sua adesão. Para tal, não devemos persistir numa mera repetição do mantra rotineiro, devemos trabalhar o discurso com base na evolução da própria realidade.

Uma nova e mobilizadora narrativa europeia tem assim de ser construída e deve assentar em dois pilares que se complementam.

Por um lado, deve conseguir envolver os cidadãos, em especial as novas gerações, na revisitação dos seus fundamentos culturais coletivos, explorando as virtualidades das novas tecnologias e da vida sustentável, a imensidão de plataformas de incentivo à criatividade, as dimensões das práticas sociais solidárias, gerando uma afetividade ao projeto europeu, produto de uma adesão voluntária às suas imensas virtualidades e potencialidades. Deve, no fundo, trabalhar para um Novo Renascimento.

Esse registo deve também assentar na exploração das dinâmicas resultantes dos novos “territórios” comuns que a Europa conquistou entretanto para os seus cidadãos, introduzindo, progressivamente, uma reflexão de matriz europeia nos espaços públicos, nacionais ou continental. Há que dar passos na construção da Europa “como cidade”, uma polis com alma própria, identificável pela sua projeção civilizacional autónoma. Trata-se, assim, de organizar o discurso em torno de um Novo Cosmopolitismo.

(Artigo que hoje, Dia da Europa, publico no jornal "Expresso)

"A propósito"


Na noite deste sábado, às 23 horas, com Carlos Moedas, António Vitorino e Carlos Coelho, estarei na SIC Notícias a falar do Dia da Europa, que hoje se comemora.

sexta-feira, maio 08, 2015

Viva a política!

 
O resultado das eleições britânicas, confirmando de uma forma inesperada David Cameron em Downing Street, esmagando com fragor os trabalhistas, fazendo pagar aos liberais-democratas o estatuto de partido-muleta sem identidade apelativa, dando novo alento ao independentismo escocês e tornando irrelevante o euroceticismo radical, é a prova que o eleitor é livre e que as sondagens, particularmente num sistema como o britânico, valem o que valem - e, neste caso, valeram muito pouco.
 
O que sai daqui? Sai a óbvia necessidade de Cameron cumprir a promessa de, em 2017, fazer um referendo sobre se o Reino Unido quer ou não quer permanecer na Europa, o que vai transformar-se numa imensa pressão sobre a própria Europa no sentido de "dar" aos britânicos aquilo que eles necessitam para vencer este referendo, abrindo o dossiê da "devolution" de poderes europeus noutros países, a começar pela Finlândia. Sai a necessidade do "labour" se reinventar, seguramente com novo líder e sabe-se lá com que linha política, depois do fracasso do "new labour" de Blair e Brown, seguido desta derrota de "Red Ed". Sai o início de mais um ciclo da reconstrução dos liberais-democratas, que hoje pagam, e bem, o facto de não terem conseguido que, no acordo de há cinco anos com os conservadores, tivesse ficado preto-no-branco a aceitação do sistema proporcional (que os trabalhistas também detestam). Sai, muito provavelmente mais cedo do que esperado, um novo referendo sobre a independência da Escócia, que não é indiferente para os equilíbrios europeus (bom dia, Catalunha!). Sai a constatação de que ser eurocético não é necessariamente sinónimo de ser uma caricatura disso mesmo e que, para um votante médio, a direita tradicional faz bem esse papel, sem necessitar do folclore do UKIP.
 
Esta eleição é a vitória da política, da surpresa depois do encerrar das urnas, da rasteira dos votantes aos espertalhaços dos institutos de opinião. Ou, como diria Churchill, do facto da democracia provar ser o menos mau de todos os regimes. Mesmo que o resultado não agrade a alguns, como me acontece a mim no dia de hoje.

O programa de Nóvoa

 
O afloramento no discurso de Sampaio da Nóvoa de apreciações em torno de políticas públicas, dando alguma matriz programática à sua candidatura, desencadeou nervosismo em hostes partidárias. Da direita a setores incomodados da esquerda, elevaram-se acusações de que, se chegado a Belém, o candidato se preparará para empreender uma leitura extensiva dos seus poderes, intervindo em áreas da competência governativa.
 
O modelo constitucional em que vivemos é muito “português”, nas virtualidades e nos defeitos. Tributária de uma construção semi-presidencialista ambígua, a nossa Constituição é um compromisso entre um pendor parlamentarista, que marca muita da tradição jacobina da primeira República, com a legitimidade de um chefe do Estado eleito por sufrágio direto. Diluídos que foram os poderes do chefe de Estado por revisão constitucional, a interpretação “autêntica” desses mesmos poderes passou a fazer-se à luz das experiências concretas dos presidentes que tivemos e, muito em especial, do saldo de memória que de cada uma delas ficou fixado no imaginário político. Para o bem e para o mal.
 
Sampaio da Nóvoa tem um programa e, olhando para o que tem dito, fica claro que esse programa é o cumprimento da atual Constituição da República. É por isso natural que quem detesta os equilíbrios consagrados no texto constitucional se lhe oponha. Já parece menos óbvio que o vejamos fustigado por quantos deveriam ter aprendido com aquilo que se passou nos últimos anos, onde a Constituição foi a “linha Maginot” da defesa contra o desmantelamento do Estado social e, muito em particular, a barreira que evitou que a vaga liberal dos tutores externos do “protetorado” ultrapassasse os limites daquilo por que se fez abril. Não me revejo em quem acha que o alfa e o ómega da nossa vida política se situa exclusivamente nos partidos. Os partidos estão a serviço dos objetivos plasmados na Constituição e não o contrário.
 
De um futuro presidente espera-se que seja o garante dos valores e mecanismos da Constituição da República, velando pelo seu respeito e estabelecendo com quem o elegeu uma relação de confiança recíproca.
 
Espero que Sampaio da Nóvoa nos possa vir a dar sólidas razões para confiar que não tem uma visão cesarista do cargo e continuar a transmitir a confiança de que, com ele em Belém, os valores caros a quantos se reveem no 25 de abril serão sempre preservados. Mesmo contra a opinião de alguns partidos, se isso vier a ser necessário.
 
(artigo que hoje publico na minha coluna semanal "Uma Segunda Opinião", no Jornal de Notícias)

quinta-feira, maio 07, 2015

As gueixas e o Japão


Contava há pouco a um amigo a irritação que sempre me provocam evocações pseudo-históricas que, por muito repetidas, se fixam no tempo e, agora com a pérfida ajuda da internet, passam mesmo a doutrina, consultadas com a "seriedade" da "cultura wikipédica". Estas deturpações, que são inócuas em "petit comité", tornam-se "virais", como agora se diz, perante mundos incultos e suscetíveis de acreditarem em qualquer patranha, desde o "milagre das rosas" às frases históricas de dona Filipa de Lencastre ao armar os seus filhos cavaleiros, relatadas por Oliveira Martins, ao qual Eça escreveu uma carta inquirindo "Estavas lá? Ouviste?". José Hermano Saraiva, na sua historiografia de almanaque, popularizada pela televisão, foi responsável por muitos desses atentados à verdade histórica, absolvida no imaginário popular pela sua fantástica capacidade histriónica.

Vinha isto a propósito de uma "palestra" a que, há dias, tive o azar de assistir, em que o prolixo orador, sem sequer se rir, deixou a sua "versão" sobre a origem do nome de Japão. Dizia ele que, perante uma famélica tripulação de uma caravela lusitana, um dos marinheiros, à vista pela primeira vez da costa nipónica, terá gritado, esperançoso: "Já há pão!". Presumiria ele, assim, que a chegada essa ilha permitiria saciar, de imediato, o apetite da esquadra lusa.

Para minha surpresa, o meu amigo não se riu. E logo acrescentou: "É capaz de ser verdade! Sabes de onde é que vem o nome de "gueixas", as dóceis acompanhantes que fazem parte da história do Japão?". Antes que eu respondesse, respondeu ele: "É capaz de ter sido o mesmo marinheiro que, já com a costa bem próxima, ao vislumbrar mulheres por ali, terá gritado: "Há ali gajas!". E assim nasceram as gueixas". 

É, sem dúvida, uma versão que tem idêntico grau de verosimilhança... 

quarta-feira, maio 06, 2015

Oscar Mascarenhas


Morreu Oscar Mascarenhas, um jornalista de opinião frontal, muitas vezes incómodo, com coragem para ter posições contra a corrente, o que nem sempre o tornava (e ainda bem!) uma personalidade fácil. A reflexão deontológica sobre o jornalismo português deve-lhe muito, embora dificilmente se possa dizer que, neste particular, tenha conseguido levar a água ao seu justo moinho.

terça-feira, maio 05, 2015

De parabéns


Era um femeeiro, o que, estou seguro, muitos dos meus amigos (menos algumas das minhas amigas, claro) não considerarão um defeito por aí além. E eu não digo o que penso. Françoise Giroud, na biografia que fez da sua mulher, cobriu-o de notas de mau comportamento. Tinha um grande e rico amigo que lhe financiava alguns gastos (onde é que eu já ouvi isto?), mas chegou a passar dias de fome, dificuldades familiares imensas. Às vezes, na vida, terá sido incoerente com algumas coisas que defendia, como acontece aos melhores. E ele era, sem a menor sombra de dúvida, dos melhores, era uma inteligência brilhante, um economista e um filósofo que tratava a História por tu. Na minha primeira ida a Londres, no final dos anos 60, entrei por um buraco da cerca do cemitério de Highgate, na altura muito ao abandono, para visitar o seu belo túmulo. Andei pelos lugares onde nasceu e viveu, bebi à sua memória uma "half pint" no Jack Straw's Castle, o seu pub preferido. Li-o com avidez, enquanto me achei parceiro indispensável da tarefa cívica de mudar o mundo. Tive metros de estante com as suas obras, dos seus seguidores, dos seus intérpretes, dos seus múltiplos distorçores, que hoje jazem na biblioteca onde repousam os livros sobre tudo aquilo em que um dia acreditei e que faz parte de uma herança de ideias que, nem por tê-las abandonado, ousarei alguma vez renegar. Continuo a manter um imenso respeito por essa personalidade fascinante que marcou o século XIX, que esteve sempre presente no imaginário mundial durante todo o século XX - muitas vezes associado a opções bem sinistras, outras vezes por muito boas e ainda atuais razões. Agora, no século XXI, revisitá-lo parece voltar a estar na moda, mas eu já dei para esse peditório e ele já não faz parte das minhas prioridades de leitura e estudo. Hoje, ao cruzar a avenida da Liberdade pela rua Alexandre Herculano, a caminho da Universidade onde trabalho, olhei com um sorriso a estátua de António Feliciano de Castilho e lembrei-me da frase do meu saudoso professor de Economia Política, Ramos Pereira, que sempre ironizava ao passar por ali: "não sei como é que o Salazar deixou erguer em Lisboa uma estátua a Karl Marx".

É dele que se trata. Nasceu em 1818, no dia 5 de maio. Está hoje de parabéns.

Memorabilia diplomaticsa (XXXI) - A Noruega, o presidente português e o hino


Se a tradição norueguesa ainda é o que era, o presidente Cavaco Silva, durante a visita que fará à Noruega, irá almoçar ao Rådhus, a municipalidade de Oslo, a convite do primeiro-ministro, ponto de agenda que costuma ser parte integrante de todas as visitas de Estado.

A este propósito, recordo-me de um embaraço por que passei, aquando da visita de Estado do presidente Ramalho Eanes àquele país, nos anos 80. Embora eu fosse o organizador logístico da visita, em nome da embaixada, confesso nunca me passou pela cabeça verificar a partitura do Hino Nacional que ia ser usada por uma banda norueguesa nas cerimónias oficiais. Dei por adquirido que tinham a partitura certa. E, de certo modo, tinham... 

Assim, no início do almoço oficial no Rådhus de Oslo, lá começou a ser tocado o nosso hino. Acabada que foi execução da música que todos conhecemos, os portugueses presentes iniciaram uma salva de palmas, arrastando consigo os noruegueses. Com surpresa, verificámos que a orquestra "arrancou" para uma segunda execução, repetindo a primeira. Era estranho, mas tudo bem! E, chegado o fim desta, os presentes avançaram então, mais decididos, para uma nova salva de palmas. E não é que a orquestra "atacou", de novo, com mais uma repetição?! Onde é que aquilo acabaria?

Por jeito próprio ou como quem "connaît la musique" (expressão aqui apropriada), o presidente Eanes mantinha-se impávido. O resto dos portugueses mostrava alguma perplexidade, com Fernando Reino, chefe da casa civil de Belém e até há poucos meses embaixador em Oslo, a fuzilar-me interrogativamente com o olhar. Só sosseguei quando os músicos noruegueses se aquietaram, por fim, largos minutos passados sobre o início da música.

O que é que se tinha passado?

O verdadeiro hino português, "A Portuguesa", é composto por três partes e não apenas por aquela que vulgarmente se canta. A primeira versão oficial do hino, que surgia no antigo "Diário do Governo", tinha aquelas três partes, além de três repetições da estrofe (Às armas...). Alguns países guardam essa versão. Por isso, não é raro ser essa a versão utilizada por uma orquestra ou banda estrangeira, na receção a um dignitário português. Depois desta cena em Oslo, e tal como tem acontecido a muitos meus colegas, já me tem sido dado ouvir esta "tripla" versão do hino pelo mundo fora. Nessas ocasiões, o único problema é quando há portugueses a cantar alto a letra do hino. Coitados, lá repetem mais duas vezes o "Heróis do mar...". É que ainda estou por encontrar alguém que saiba a versão completa. Deixo aqui a parte dessa parte da letra que ninguém sabe:

Desfralda a invicta Bandeira,
À luz viva do teu céu!
Brade a Europa à terra inteira:
Portugal não pereceu
Beija o solo teu jucundo
O Oceano, a rugir d'amor,
E teu braço vencedor
Deu mundos novos ao Mundo!

e ainda

Saudai o Sol que desponta
Sobre um ridente porvir;
Seja o eco de uma afronta
O sinal do ressurgir.
Raios dessa aurora forte
São como beijos de mãe,
Que nos guardam, nos sustêm,
Contra as injúrias da sorte.


Não se pode dizer que seja uma letra particularmente "inspirada", como se diz dos poetas assim-assim.

Ainda uma nota complementar, para quem não saiba. Vale a pena explicar que aquele suicidário, e que sempre me pareceu algo masoquista, "contra os canhões, marchar, marchar", presente no refrão, é uma versão retificada da letra original, onde se lia "contra os bretões, marchar, marchar" - porque o hino tinha sido construído para reagir à afronta de Londres, ao tempo da indignação exaltada contra a "pérfida Albion" no caso do "mapa cor-de-rosa".

Fico agora com imensa curiosidade em saber que hino foi, de facto, tocado em Oslo.

Ainda o Bairro Alto


Anteontem, no meu passeio do Chiado ao Bairro Alto, e volta, que por aqui descrevi, passei à porta da Adega Machado. Estive quase tentado a entrar, quanto mais não fosse para ouvir Marco Rodrigues, um fadista da nova geração de quem aprecio bastante este "Do Chiado ao Bairro Alto".

segunda-feira, maio 04, 2015

Memorabilia diplomatica (XXX) - Cavaco Silva e as trutas norueguesas

Ilustração de Carlos Barradas

O presidente da República visita, a partir de hoje, a Noruega. E lembrou ontem aos jornalistas a sua primeira visita àquele país nórdico, em final de junho de 1980, como ministro das Finanças.

Também eu recordo muito bem essa visita. A embaixada portuguesa na Noruega era muito pequena, constituída pelo embaixador e por mim, com o apoio de apenas três unidades de pessoal administrativo. Cavaco Silva viajava acompanhado por uma larga delegação, justificada pela importância que então tinham as relações económicas e técnicas entre os dois países, que iam desde as questões têxteis a problemas recorrentes com a nossa frota pesqueira, passando pelas questões do Fundo EFTA e pelo comércio do bacalhau, além da importante ajuda bilateral que a Noruega dedicava então a Portugal, nomeadamente na área da saúde. Não obstante a preciosa colaboração dos noruegueses, foi difícil à nossa minúscula estrutura montar a visita, que implicava vários contactos em Oslo e uma reunião da "comissão mista" em Ålesund, um dos portos da costa oeste, onde era preparado muito do bacalhau de que Portugal era um dos grandes consumidores.

Em Ålesund, Cavaco Silva foi o principal convidado num restrito almoço privado na confortável casa de madeira do nosso cônsul honorário, um homem de fácies duro, mas uma personalidade muito agradável, com o nome de Bjørn Knudsen. Não sei se por lá existirão ainda fotografias de uma partida caseira de bilhar que testemunhei, entre o cônsul e o então ministro das Finanças português, sobre cujo resultado a minha memória nada regista.

Na véspera, no jantar oferecido pela municipalidade local, passara-se uma cena curiosa. Foi-nos servido salmão cozido. Acabado o prato, foram retirados toda a loiça e talheres. E nova loiça e novos talheres foram colocados sobre a mesa. Pensei que viria uma carne de rena, muito comum no país. Contudo, achei estranho ao verificar que eram, de novo, usados talheres de peixe. Pensei cá para comigo: "vão servir bacalhau!". Embora apresentar um segundo peixe fosse uma opção algo estranha num jantar que tinha um cariz oficial, sempre era uma oportunidade para destacar o principal produto de exportação para Portugal. Qual quê! Era apenas uma segunda rodada de salmão cozido, para estupefação de toda a delegação portuguesa, parte da qual me interrogava, sem sucesso, sobre tão bizarro pleonasmo gustativo decidido pelo protocolo autárquico local.

No último dia, no regresso a Oslo, depois de vários dias a madrugar, estávamos todos muito cansados, a começar pelo embaixador, sobre cujos ombros cairia sempre o sucesso ou o insucesso da visita. Antes da partida para o aeroporto, o embaixador ofereceu ao ministro e à dra. Maria Cavaco Silva, bem como à restante delegação, um almoço na residência da nossa embaixada, em Drammensvein.

Cavaco Silva, por feitio ou cansaço, estava pouco falador, entre o tímido e o distante. O embaixador, um homem com a técnica de alimentação social das conversas que os anos na "carreira" ensinam, lá procurou encher o ambiente, elegendo como interlocutora principal a mulher do ministro, que percebera ser uma figura mais expansiva e opinativa. Tudo, porém, sempre num registo bastante formal.

A certo ponto da refeição, foram servidas uma belas trutas. Mais como comentário de circunstância do que como manifestação de especial curiosidade, a dra. Maria Cavaco Silva inquiriu: "Costuma ter por cá trutas, senhor embaixador?". É então que ao embaixador, talvez com a prudência e a contenção fragilizadas pelo imenso cansaço que o invadia, saiu esta inopinada graça: "Não tenho estado mal servido de trutas. Logo que aqui cheguei, apareceu-me o dr. Mário Soares. Pouco tempo depois, esteve aqui a engª Lurdes Pintasilgo e, logo a seguir, o professor Freitas do Amaral. Agora, tenho cá o sr. ministro. Como vê, minha senhora, de trutas estou bem servido".

(Vale a pena assinalar, para quem o não saiba, que, numa certa geração - que era a do embaixador -, o termo "truta" era utilizado coloquialmente como sinónimo de "pessoa importante".)

A mesa gelou, com os cantos dos olhos dos presentes a tentarem analisar a reação de Cavaco Silva. Houve cinco trágicos e longuíssimos segundos de interminável silêncio, até que o professor Veiga Simão, ao tempo presidente do LNETI, soltou uma forte gargalhada, que teve o condão de provocar um "rassurant" esgar no ministro, um largo sorriso da respetiva mulher e rumores de risada nos restantes presentes. Do gelo, passámos ao alívio e, logo de seguida, às trutas. 

Bairro Alto


Ontem, domingo, deu-me para ir jantar ao Bairro Alto. A (re)viver em Lisboa desde há mais de dois anos, dei-me conta que o Bairro Alto deixou de ser o local onde, no passado, ia muito frequentemente, a restaurantes e alguns bares. Entrei no bairro ido do Camões e, de repente, "perdi-me"! Eu já não conheço "aquele" Bairro Alto! Andei por ali uma boa meia hora, cheio de curiosidade. Passei por dezenas de restaurantes, tascas e bares cuja existência e nome desconhecia por completo, só de quando em vez ouvi alguém falar português e, mesmo nesse caso, era quase sempre com acento brasileiro. Verdade seja que não me senti minimamente tentado a entrar em nenhum daqueles espaços, que têm o mesmo atrativo para um nativo do que a rua das Portas de Santo Antão (com exceção do Gambrinus e do Solar dos Presuntos) ou a rua Jardim do Regedor. Mas fiquei imensamente satisfeito por ver o bairro cheio de gente, com os restaurantes "à cunha", numa noite quase-chuvosa de domingo, com um ambiente cosmopolita, que nada fica a dever a outras áreas similares por esse mundo fora. O movimento nesta zona de Lisboa, que se prolonga por Santa Catarina, pela Bica e chega ao Cais do Sodré, tem hoje um turismo pujante. E ainda bem! Espreitei o Alfaia, mas já nem tinha os "lombinhos à indiana" na lista afixada na porta. Confirmei que a Tasca do Manel e o vizinho Fidalgo estavam fechados, o mesmo era verdade para o Pap'Açorda e o Casanostra. Idem para a Primavera e o 1° de maio. Não testei o novo registo do BarAlto e o Bota Alta estava de folga. Não me aventurei pela zona longínqua do Cem Maneiras ou para os lados do Farta Brutos. Aqui entre nós, este Bairro Alto, em toda a sua glória turística, é hoje uma ilha estrangeira em Lisboa. E se acho isso bem simpático, vi-me a concluir que o bairro deixou (em definitivo?) de me atrair (dizem-me que há umas lojas giras durante o dia). No fim desta breve incursão, gastronomicamente frustada, decidi ir jantar a outro lado. Ali perto, o SeaMe estava a abarrotar, a Taberna da Rua das Flores nem luz tinha, pelo que acabei na Brasserie de l'Entrecôte, por grande sorte de uma marcação de alguém que faltou à última da hora. Como dizia o Camilo de Oliveira: "isto é que vai uma crise!"

domingo, maio 03, 2015

Humilhação

 
Acontece há muitos anos mas, aparentemente, ninguém se preocupa com o espetáculo humilhante dos familiares e amigos dos detidos na Penitenciária de Lisboa, expostos por largos minutos à curiosidade e olhares públicos, como se lhes não bastasse o seu próprio sofrimento de afetividade.

A propósito da ditadura

Alguém, de uma geração bem mais nova, comentava comigo numa conversa o texto que anteontem aqui publiquei, sobre uma pequena e inocente "aventura" num 1º de maio. Para se mostrar surpreendido com a violência e o arbítrio da repressão política nesse tempo da ditadura, agora que está na moda absolvê-la dos crimes e interpretá-la como um tempo de "lei e ordem", em que a "paz social" reinava, onde os portugueses "viviam habitualmente", como gostava de dizer o déspota de Santa Comba. É claro que as perseguições, os presos políticos, as torturas, os assassinatos, os crimes coloniais, somados à condenação do país à miséria de décadas foram, para alguns, apenas "detalhes", como diria Le Pen sobre os campos de concentração nazis.

Às vezes, torna-se difícil explicar aos jovens os arbítrios e os métodos da ditadura. A censura da imprensa, numa era de internet e de circulação livre de informação, é, por exemplo, algo que eles têm dificuldade em imaginar e conceber.

Há semanas, numa palestra pública para um auditório de jovens, dei-lhes três exemplos muito simples, que eu pressentia que ninguém na sala conhecia. E era verdade, todos ficaram surpreendidos. Não posso é garantir se todos ficaram escandalizados.

O primeiro teve a ver com o referendo para aprovação da Constituição de 1933. Ao revelar que as abstenções contaram como votos a favor - porque quem não se opõe é porque está de acordo... - a sala caiu num espanto.

O segundo caso, que muita gente bem adulta ainda hoje desconhece, é que, nos atos eleitorais da ditadura, as pessoas levavam os boletins de voto de casa. As listas (quase sempre só uma, salvo os raros casos em que a oposição se apresentou a voto) eram entregues na residência dos potenciais votantes, pelo correio ou pessoalmente (corri as ruas de Vila Real, em horas mortas, nessa tarefa, pela oposição local, em 1969). À oposição não era dada cópia dos cadernos eleitorais e, não havendo fotocópias à época, era necessário copiar à mão os nomes e moradas de cada um, em escassas horas em que a leitura das listas era permitida. A impressão dos boletins de voto era da responsabilidade dos candidatos, ficando o votante sempre na dúvida sobre se o tipo de papel escolhido era, de facto, o mesmo e se, na hora do escrutínio, ao entregar o seu voto, não podia ficar identificada a sua opção.

Mas a maior surpresa para meus jovens auditores foi a revelação do conceito de "medidas de segurança". Para quem não saiba, o cumprimento de uma pena de prisão por "crime político" podia não significar a saída imediata da prisão. Se as autoridades viessem a considerar que havia um perigo público com o regresso do cidadão à liberdade (e mesmo em certos casos de absolvição!), podiam ser instituídas "medidas de segurança" por um período de dois anos - decisão que era renovável, sem um limite legal, o que teoricamente poderia configurar uma prisão perpétua. Leia-se esta elucidativa peça (decreto-lei 40.550) : "O caráter indefinido do internamento permite dizer àquele que o sofre que nas suas mãos está o merecer a liberdade, o que poderá ser um meio eficaz de estimular no seu espírito reações salutares"...

Era isto o fascismo. Querer branqueá-lo não é apenas uma desonestidade, é um crime. Que a democracia não pune com prisão, mas deve punir com imenso desprezo.

sábado, maio 02, 2015

Mota Amaral


Na vida política nacional há uma regra que, se estiverem atentos, ajuda a entender muito do que se passa no seio das formações partidárias, no ano que antecede os atos eleitorais. Essa regra é simples: a menos que se tenha uma estatura nacional que seja difícil abalar (e estamos sempre a falar de um número de casos que nunca excede os dedos de uma mão) ou um sólido apoio regional que as lideranças lisboetas não ousem contestar (o que é também um número limitado), um deputado, nesse tal período que antecede uma nova legislatura, ou mantém uma atitude de grande disciplina face ao líder máximo do partido ou arrisca-se a ficar fora das contas para integrar os futuros grupos parlamentares. Sigo há muito, com imensa curiosidade, o prudente arquivar da heterodoxia de algumas figuras, que se "amansam" e recolhem ao redil partidário dominante quando o sufrágio surge já no horizonte, com o óbvio objetivo de terem garantido o passaporte para o assento na legislatura seguinte, um seguro de vida política por mais alguns anos. E, para alguns, isto já vai há décadas...

Vem isto a propósito de Mota Amaral. Único sobrevivente da "ala liberal" (teria graça elaborar sobre este conceito de "liberal", nos dias que correm) da Assembleia "nacional" da ditadura, com anos de liderança do governo regional açoreano (onde chegou a flirtar com algum perigoso separatismo, pecadilho de que já foi absolvido), Mota Amaral estabilizou-se com grande seriedade e respeitabilidade na democracia, um pouco a exemplo de Adriano Moreira. Tendo sido presidente da Assembleia da República, com o nome a circular em tempos como possível candidato a Belém, revelou sempre um espírito de grande independência. Impoluto na sua vida privada, homem da "Opus Dei" (o seu homólogo da Madeira, Alberto João Jardim, em contraponto, confessava-se saudavelmente da "Copus Night"), Mota Amaral nunca se coibiu de dizer o que pensava e chegou a arriscar processos disciplinares por dissidência no voto. O estatuto nacional nunca o favoreceu excessivamente, o peso regional foi-se erodindo e, agora, vê-se afastado das listas para as próximas eleições legislativas.

Mota Amaral, dá hoje uma entrevista de que o DN faz mal em não ter destacado a frase mais sibilina que nela inserida. Ao ser perguntado se a sua opção religiosa terá contribuído para o seu afastamento, saiu-se com esta pérola: "Não sei se por detrás da cortina me carimbaram por ser do Opus Dei". É que, como Mota Amaral muito bem sabe, é por "detrás da cortina" de ritos persistentes e concorrentes que sempre se aventalam e arquitetam conspirações universais.

O regresso de Dias Loureiro

O amigo destaque dado por Passos Coelho à figura de Dias Loureiro, numa cerimónia em Aguiar da Beira, foi um gesto definidor de uma certa maneira de interpretar a ética política. Custa-me ver o primeiro-ministro do meu país decretar, com uma ligeireza surpreendente e quase irresponsável, a prescrição da saudável quarentena que tem vindo a envolver, na consideração pública, uma das personagens mais emblemáticas das trapalhadas financeiras do passado recente. Alguém que, por essa razão, foi forçado a abandonar o Conselho de Estado, lugar onde tinha sido alcandorado por obra e graça de quem o juízo popular também não deixou que passasse incólume, na ligação a um sinistro instituto bancário, onde prevalecia uma espécie de monopólio partidário. Nem quero crer que tenha sido uma pulsão corporativa a motivação última da fala do dr. Passos Coelho.

Mas mais do que o gesto de estender de mão a Loureiro, o dr. Passos Coelho teve o desplante de o chamar à colação quase como paradigmático de um mundo de negócios que considerou destacável, quase exemplar. Esta absolvição política revela muito de uma certa forma de viver a política, porque põe a nu o referencial que serve de medida a um modo de estar no serviço público. Porquê? Porque nos permite antecipar a potencial complacência que poderá vir a ser assumida face a outros pecadilhos que o futuro vier a revelar. E, se isto é trágico para a democracia portuguesa, é também muito triste para uma classe política cuja regeneração é hoje uma exigência popular.

Todos os partidos - embora uns mais do que outros, como os exemplos confirmam - são suscetíveis de acolher no seu seio figuras que deles se aproveitam, em causa própria, para negociatas e vantagens patrimoniais, à revelia das regras da moral de comportamento. Não há nenhum antídoto eficaz para isto, mas há três regras que me parecem emergir como evidentes.

A primeira, prende-se com a necessidade da assunção de uma filosofia pública de denúncia firme e tipificada de certos comportamentos, da traficância de influências às práticas de corrupção. Esse é um passo essencial para evitar o "vale tudo" e, por essa razão, lamento profundamente que a lei das incompatibilidades dos titulares de cargos públicos não seja bem mais rigorosa do que o que é, em especial no que respeita aos deputados.

A segunda, essencial pelas razões óbvias, é que o comportamento dos agentes políticos em exercício, no poder governativo ou nos principais órgãos dos partidos, seja, em tudo, exemplar, inatacável e sem "telhados de vidro". É difícil encontrar gente assim? Pode ser, mas há. É que, se dermos por adquirido que é possível ter à frente de um Estado figuras cujo exemplo não pode servir de referente aos cidadãos a quem se exige probidade, então é porque já "batemos no fundo". Mas, atenção!, também se dispensam, em absoluto, os "Paulos Morais" que, de sobrolho ético carregado, têm sempre a boca cheia de insinuações e as mãos vazias de provas.

Finalmente, a terceira regra: o fim do relativismo. Julgar a gravidade de um caso pelos casos dos outros é a fórmula saloia, típica de "conversa de taxista", que acaba por alargar o manto da impunidade. Afirmar que "o caso de fulano é grave mas, coitado, não se pode compará-lo com o de beltrano!" é o escape medíocre de quem, ao hierarquizar o mal, absolve e deixa escapar o mal menor para concentrar a sua indignação apenas nos exemplos mais chocantes. Toda a trafulhice económica, desde que com sólidas provas, deve ser fortemente denunciada, independentemente do seu autor ou da cor política de que ele se reivindica. Repito: desde que provado o delito, o "name and shame" dos políticos tem de ser a norma, porque a prevenção e a justiça também se faz através da evidência dos exemplos.

Um político, porque se arrogou o direito de querer representar os outros e o interesse público, não é um cidadão igual aos outros. Pode, como reivindicou um dia para si próprio o dr. Passos Coelho, não ser "perfeito". Mas tem o dever de esforçar-se por sê-lo e, em especial, não tem o direito de, levianamente, apontar como exemplo ao país quem, reconhecidamente, está já muito distante dessa perfeição. 

Notícias da aldeia

Nas aldeias, os cartazes das festas de verão, em honra do santo padroeiro, costumam apodrecer de velhos, chegando até à primavera. O país pa...