sábado, maio 10, 2014

Cavalos

O adido militar junto daquela embaixada era um pouco "bronco". Oriundo da arma de Cavalaria, saíam-lhe por vezes algumas expressões que o bom-senso, mas em especial a boa educação, recomendariam que não fossem utilizadas em círculos sociais. O modo rude como tratava a mulher, uma senhora simpática e discreta, era objeto de frequentes críticas. O embaixador não o apreciava excessivamente, pelo que foi com alguma relutância que, um dia, se viu obrigado a aceitar o raro (que teve, pelo menos, a vantagem de ser o único) convite que o militar lhe formulou para ir jantar "lá a casa".

O repasto era em "petit comité", só com as respetivas esposas, o que tornou a situação ainda um pouco mais pesada. Ao longo da refeição, o militar contou, numa linguagem que às vezes fazia alçar o sobrolho à embaixatriz e baixar os olhos à sua própria mulher, alguns episódios das "campanhas de África", a roçar o picaresco, com o vernáculo a ajudar. Levemente incomodado e não querendo "dar troco", o embaixador foi parco em comentários, com as senhoras a fazerem a despesa da parte mais simpática da conversa.

Chegada a altura do café, foi colocada a alternativa de o servir nos sofás da sala ou à mesa de jantar. O embaixador, num subliminar truque para apressar o ritmo para a saída, propôs que fosse logo tomado à mesa. Servidas as senhoras, o açucareiro acabou por ficar próximo da mulher do adido, mas fora do alcance do embaixador, que discretamente o solicitou. Foi então que, da boca do distinto oficial de Cavalaria, saiu esta pérola que o anedotário diplomático recolheu:

- Então, Miquelina?! Dá aí um coice no açucareiro para o senhor embaixador!

Em tempo: um comentador acidulado (e, claro, anónimo e insultuoso) quis ver neste post um ataque aos militares que servem nas nossas embaixadas. Desengane-se! Tenho a sorte de ter ficado com um amigo em todos - mas todos! - os excelentes profissionais militares com quem me cruzei em várias embaixadas. Estou mesmo certo que eles acharão graça a esta historieta, aliás difícil de contar de outra maneira.

sexta-feira, maio 09, 2014

'"Aspas"

"Andas com aspas a mais", disse-me há dias um amigo, leitor regular do blogue. Já tinha pensado nisso, mas esperava que ninguém tivesse notado...

Sem ser de forma deliberada, dei-me conta que tenho vindo a usar uma escrita cada vez mais solta, com maior frequência de alguma coloquialidade. E como, em mim mesmo, pressinto a estranheza pelo recurso a esse tipo de vocabulário, coloco-lhe aspas, quem sabe se para me distanciar.

Por outro lado, recorro também muito a expressões estrangeiras, não por qualquer snobismo cosmopolita mas apenas porque me ocorrem, por facilidade, por preguiça, porque elas encerram muitas vezes aquilo que quero dizer, dando-me mais trabalho estar à procura de equivalentes portugueses. Às vezes pergunto-me se, para alguns leitores, isso não será um problema. Além de que as aspas, nas palavras estrangeiras, são para mim de inevitável regra. Como é o itálico, para as poucas latinadas que trago na memória.

Voltando ao início. Uso cada vez mais aspas. Concedo que, com isso, os textos perdem algo em elegância. Mas esse é talvez o preço que pago para ter estofo para manter este blogue ativo. "That's life!"

A Europa e os seus tempos

Ao final da tarde de ontem, dei-me conta de que haviam passado precisamente 18 anos desde que estivera a falar naquele mesmo auditório da faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa. À época, a conversa foi com o Francisco Sarsfield Cabral (que é feito de si, Francisco?). Agora, fui palestrante único, tendo o professor João Salgueiro para o diálogo final.

Algumas outras diferenças marcaram as ocasiões. Em ambas, a Europa foi o tema, mas a Europa de que falei já muito pouco tem a ver com a Europa desses tempos. O que agora disse foi centrado nas questões económico-financeiras, ao passo que, na outra vez, recordo que quase só se falou de instituições. Dei-me conta que tinha mais perguntas do que respostas para elas, mas é de boa regra os "governantes" terem sempre mais certezas. Desta vez, quer a palestra quer o debate que se lhe seguiu foram em inglês, porque é essa a língua de trabalho do curso de Economia, frequentado por gente que vai do Médio Oriente a uma muito variada Europa. Os tempos mudaram bastante. Mas continuam muito interessantes.

A "saída limpa"

A opção por uma "saída limpa", após o termo do programa de ajustamento, foi uma decisão acertada? Sabê-lo-emos no futuro.

Convém ter claro que vários países, a começar pela Alemanha, foram dando claros sinais de que não eram favoráveis ao estabelecimento de um "programa cautelar" para Portugal. Quando afirmavam publicamente que a "opção" era de Portugal, estavam a esconder jogo: sabiam da dificuldade em obter uma prévia concordância por parte de vários Estados. Porém, a verdade é que o governo português poderia, se quisesse, ter forçado essa vontade, se acaso tivesse considerado que um "programa cautelar" era a opção mais prudente. É claro que isso não seria "de borla": foi por pressentir que havia alguns "strings attached" que a Irlanda fez a opção que fez. 

O governo português não entendeu assim e, dessa forma, vai terminar o ajustamento com um regresso aos mercados sem nenhuma "safety net", para o caso de alguma coisa vir a correr mal. É uma posição que, no essencial, traduz uma forte aposta numa estabilidade dos mercados que, enquanto país, Portugal não tem a menor hipótese de controlar ou sequer influenciar. É bom que isto se saiba e se diga. 

Independentemente do facto do governo ter conseguido cumprir muito daquilo que lhe era exigido pelos credores, a verdade é que só por uma ilusão de ótica alguém pode ficar convencido que o atual "apaziguamento" dos mercados, com a queda dos juros da nossa dívida, tem essencialmente a ver com esse comportamento. Basta olhar para a queda abrupta dos juros gregos para se perceber que são essencialmente fatores conjunturais, e não a atitude e o comportamento dos governos, que está a "segurar" os mercados: foram o excesso de liquidez e, em especial, as garantias dadas pelo governador do BCE de que não deixará "cair o euro". É claro que se o nosso país tivesse abertamente incumprido, e por aí caído em desgraça aos olhos da "troika", os juros não se comportariam assim. Mas bastou-lhe conseguir "ficar bem" na fotografia (mesmo com algum "photoshop" que interessava aos credores) para que as águas se não agitassem por sua causa.  

A meu ver - mas esta é uma opinião pessoal, talvez apenas razoavelmente informada, mas que vale o que vale - a opção por uma "saída limpa" traduziu uma irresponsabilidade, que pode fazer correr grandes riscos ao país. Temo que o "fogacho" político tenha prevalecido face à prudência financeira. Mas, neste particular ponto - admito sem dificuldade -, posso estar a reagir com base na profunda desconfiança (isto é, falta de confiança) política que tenho face a esta maioria e à sua capacidade para estar à altura das circunstâncias.

Acho aliás especialmente grave, e muito sintomático, que o governo tenha escondido dos portugueses uma coisa decisiva: se alguma coisa vier a correr mal, o "programa cautelar" já não estará à sua disposição, o país terá de recorrer diretamente a um novo programa de "resgate", isto é, a "troika" regressará por aí. E acho lamentável que a oposição não tenha feito o "trabalho de casa" e nào tenha sabido denunciar isto em devido tempo.

Não se diga também que a "almofada financeira", entretanto criada (no quadro de um ambiente pontualmente favorável no mercado de capitais, que o governo fez bem em aproveitar) para suprir as necessidades de financiamento do Estado nos meses que aí vêm, constitui uma completa garantia de segurança. Se, por um conjuntura que pode nada ter a ver com a evolução da nossa situação interna (mas que eventualmente pode ser agravada por esta, com decisões do Tribunal Constitucional ou pela perceção de crise política iminente), os juros começarem de novo a disparar no mercado secundário, aquela "almofada" será apenas uma mera extensão no corredor em direção ao cadafalso de um novo "resgate" - com o que isso significará de novas medidas de austeridade.

Para bem de todos nós - e escrevo isto com total e patriótica sinceridade - espero que a opção pela "saída limpa" tenha sido a escolha acertada. Se assim for, se as agências de "rating" começarem finalmente a valorar o esforço feito por Portugal (sustentando, com as suas reclassificações, futuras necessidades de recurso aos mercados), se o BCE conseguir afastar as nuvens deflacionárias (como as declarações de Draghi ontem deixam antever) que atrasam a retoma europeia, se nenhum facto político inesperado à escala internacional (nenhuma Crimeia "a sério") vier perturbar o que está a ser este tempo de acalmia financeira, se vários outros fatores se conjugarem positivamente, tudo poderá estar bem encaminhado e haverá hipóteses de nos "safarmos". Mas, porque a vida não é um poema de Kipling, temo que haja ainda muitos "ses" por aí. Se fosse religioso, rezava. Não o sendo, apenas fico preocupado. E muito. 

quinta-feira, maio 08, 2014

O botão

As cerimónias de entrega de credenciais dos embaixadores estrangeiros passam-se no palácio de Belém, numa grande sala adjacente ao gabinete oficial do presidente da República (digo "oficial" porque, na realidade, o presidente não trabalha nesse gabinete). Durante o ato protocolar, o chefe do Estado tem a seu lado, mas um pouco mais recuado, o ministro dos Negócios Estrangeiros (ou, na frequente impossibilidade deste, um qualquer secretário de Estado, ou mesmo o secretário-geral, do MNE). Quem, em qualquer governo, passou por essa função na cerimónia sabe que deve colocar-se "sobre uma rosa" que existe no desenho da carpete.

A cerimónia é simples. O presidente recebe da mão do embaixador as chamadas "cartas credenciais" (um envelope com uma carta do chefe de Estado estrangeiro ao seu homólogo português, a "recomendar" o seu embaixador), passa-as de imediato ao membro do governo, que as "despacha", logo de seguida, para alguém do serviço do Protocolo, situado ainda mais atrás. Seguem depois para o gabinete oficial, onde os três, acompanhados pelo assessor diplomático de presidente, se sentam para uma conversa de alguns minutos.

Fiz essa "coreografia" várias vezes, ao longo de alguns anos, ao tempo em Jorge Sampaio era presidente. O traje para a cerimónia é o fraque. Com o tempo e com o corpo a ter tendência a avolumar-se, o meu fraque foi ficando cada vez mais apertado. Enquanto de pé, o único botão do fraque ainda fechava. Por isso, e de certo modo, constituía para mim um alívio o momento em que nos íamos sentar, já com esse botão desapertado. A partir daí, a sustentação do abdómen ficava a cargo do colete, este já com vários botões, que se usa sob o fraque. Mas, com o tempo, também o próprio colete foi ficando, progressivamente, mais justo e apertado. E como não podia ser desabotoado, estar sentado era também um tormento. Hoje posso dizer que aquela não era uma cerimónia que eu apreciasse excessivamente.

Numa dessas ocasiões, na receção a um embaixador de um país asiático, mal tínhamos acabado de nos sentar, enquanto o presidente dizia aquelas "niceties" iniciais ("Mr. Ambassador, it's a great pleasure to receive you in Portugal..."), antes de abordar algumas temáticas bilaterais, apoiado nas notas que os Negócios estrangeiros lhe tinham preparado, um dos botões do meu colete soltou-se, projetando-se em frente, mais de um metro. A conversa estacou por instantes. O embaixador, impávido, olhos em bico arregalados, cuidou de preservar um ar neutro, como se o caricato da cena não o tivesse tocado. Eu olhei, algo embaraçado, para um divertido Jorge Sampaio, que, se bem o conheço, deve ter dito qualquer coisa como "Mr. Secretary of State, these things happen!". O assessor presidencial, simpático e risonho, apanhou o botão e devolveu-mo, quiçá temeroso de que, se fosse eu a tentar apanhá-lo, acabasse por desencadear, fruto de uma pressão abdominal acrescida, uma temível "rajada" do resto dos botões a saltarem. Até ao fim da conversa, "fiz peito", sentado entre um presidente que me continuava a olhar bem disposto e um embaixador, muito asiático e compenetrado, que, nem por um momento, através de um simples sorriso, quis dar sinal de que comungava de uma qualquer leitura do ridículo que a situação a que assistira encerrava. Não seria por falha dele que as relações bilaterais seriam comprometidas...

quarta-feira, maio 07, 2014

Hermano Reis

Ontem, um amigo comemorou o seu aniversário e entendeu lembrar, no momento, outros amigos que o destino já não permitiu que o acompanhassem na data. Não é vulgar assim proceder, mas dei-me conta da justeza do ato. O que hoje somos depende muito daqueles que, entretanto, nos deixaram.

Passaram já três anos desde que saiu de cena Hermano Reis. Cruzámos o Hermano, vai para duas dezenas de anos, uma noite, num jantar daquela que era a novidade gastronómica da Lisboa de então, a "Tasquinha da Adelaide". Foi o Zé Guilherme Stichini Vilela quem nos apresentou ao Hermano, bem como ao Paulo, um grande amigo que com ele trabalhava. O Hermano era médico, do Porto, tinha vivido nos Estados Unidos, decidira nos últimos anos apostar profissionalmente em Lisboa. Era a alegria feita vida, a boa disposição feita atitude. Não apenas simpatizámos de imediato: tornámo-nos amigos na hora. Com ele e com o Paulo, bem como com a Manuela - quando ela aportava à capital ou quando nós íamos ao Porto - criámos uma fantástica relação, feita de cumplicidades, de boa disposição, de um entendimento sereno, como se nos conhecêssemos desde sempre. Dou-me conta que nunca soube a idade do Hermano: a sua idade era a da nossa amizade.

O Hermano era um homem grande. Como pessoa e como caráter. Olhava a vida e o mundo com um sorriso imenso, numa perspetiva saudavelmente lúdica, da qual, curiosamente, nunca estava distante um grande rigor empresarial e profissional. Eu tinha com ele uma relação um tanto bizarra: consultava-o regularmente como médico, escutava o seu avisado e muito elaborado conselho, baseado na regular leitura das minhas análises clínicas. Era, contudo, um tanto estranha essa minha "ida ao médico": invariavelmente, acabávamos a consulta a "trocar" restaurantes, a combinar experiências gustativas que estavam muito para além dessas minudências que eram os colesteróis, os trigliceridos ou os açúcares que são o verdadeiro sal da vida. Juntos, com o João Paulo Guerra (que ele nunca conheceu pessoalmente e que assinava "Reviralho" - hoje, estas coisas já podem saber-se) inaugurámos o blogue "Ponto Come" onde, como "Aldini", deixou notas deliciosas sobre experiências que a sua incessante curiosidade gastronómica motivava. Foram tempos felizes. Quantas vezes, nesses anos pesados de trabalho europeu, eu não saía diretamente do aeroporto, esmagado de cansaço, para uma tasca que o Hermano e o Paulo tinham descoberto num improvável subúrbio lisboeta, onde eu recuperava energias (isto é, calorias!) que me compensavam da miséria dos menus aéreos.

Fizémos grandes noitadas, sempre divertidas e bem regadas, daquelas que ficam para a memória eterna da vida. Cruzámos histórias, estivemos juntos em momentos menos bons. Juntámos amigos comuns, passámos bastas horas de alegria. Não só em Portugal, mas também no Brasil, onde animámos algumas incríveis noites cearenses.

A geografia da vida e os ritmos que esta entretanto levou, durante mais de uma década, acabou por nos separar fisicamente. E logo o espetro da morte iria surgir, nesse período, no horizonte do Hermano. Sinto imensa pena em não termos podido acompanhar, como deveríamos, esse seu tempo complexo. E igualmente de não termos sabido testemunhar, de forma oportuna, como também deveríamos ter feito, o nosso sentimento de partilha da dor que a partida do Hermano representou para todos - para a Manuela, para os seus filhos, para o Paulo, para os amigos. Hoje, posso revelar que ficámos como que bloqueados, em busca das palavras que nunca encontrámos.

Lembrei-me bastante do Hermano, ontem, na festa aniversariante do nosso amigo, quando ele lembrou, como diria Lopes Graça, que "até os mortos vão ao nosso lado". Como vai o Hermano.

terça-feira, maio 06, 2014

O cerco

Aqui deixo uma última história do 25 de abril de 1974.

Os voluntários foram mais que muitos, por isso houve que selecionar a dúzia de aspirantes e alferes que se disponibilizaram, naquele fim de tarde de 26 de Abril, para a operação de detenção do almirante Henrique Tenreiro, figura emblemática do regime caído na véspera.

À EPAM havia chegado a notícia de que o idoso marinheiro, que entretanto navegara para a lucrativa indústria das pescas, estaria refugiado a escassas centenas de metros do quartel, numa moradia do outro lado da alameda das Linhas de Torres, residência da “Madame Campos”, então famosa produtora nacional de cosméticos.

Um bando armado, porque pouco mais era que isso, lá partiu para o assalto. Montámos o “dispositivo” em torno da casa, num granel de imprecisão, bem digno de tropas de Administração Militar, que já haviam esquecido o pouco que Mafra lhes ensinara.

Recordo ser já noite quando o capitão Leitão (o nome não era bem esse...) e um tenente bateram à porta da casa, conosco emboscados em volta, num ambiente de alguma tensão, porque se dizia que Tenreiro podia estar protegido por elementos da Legião Portuguesa.

A sequência à abertura da porta prenunciou algum drama: a empregada que assomou, de avental e crista, recortada pela luz interior, esvaneceu à vista das G-3, pelo que vimos o Leitão e o acompanhante arrastando-a, solícitos, para dentro de casa, cuja porta entretanto se fechou.

Cá fora, entreolhámo-nos, silenciosos, à cata de algum ruído, quiçá de tiros. Nada. Passaram aí dez minutos. A porta reabriu-se e o Leitão e o tenente saíram, sorrisos nos lábios, com uma senhora idosa a acompanhá-los à soleira. Abandonámos as nossas discutíveis posições táticas e juntámo-nos, em molhada, no pátio fronteiro à casa, ansiosos por novas.

- Então?! O que é que se passou?.

O Leitão respondeu que tudo não fora mais do que um equívoco, que o Tenreiro não estava refugiado na casa, que apenas haviam assustado três senhoras e a empregada e que, além delas, apenas havia na casa dois cavalheiros de idade. Tudo, portanto, “nos conformes”. Um tanto de orelha murcha, iniciámos o regresso ao quartel.

Já na descida da rampa, um céptico lembrou-se de perguntar:

- E tu conheces o Tenreiro, ó Leitão? Não seria um dos velhotes?

Estacou o bando, com o Leitão já a flutuar na dúvida.

- Bem, de facto não conheço o Tenreiro, mas perguntámos os nomes aos tipos…

Reinstalada a confusão, subsistia uma questão magna:

- Alguém conhece o Tenreiro?

 Um de nós disse:

- De fotografia, sim.

E lá regressou a tropa ao seu objetivo. O Leitão voltou a bater à porta, entrou, terá explicado aos ocupantes da residência o dilema operacional que nos atravessava e tem então lugar a seguinte e edificante cena: fez assomar a uma das janelas os dois cavalheiros idosos, a fim de ser feito o respectivo reconhecimento visual. Em definitivo, nenhum era o Tenreiro.

E lá vimos o Leitão a sair da porta às arrecuas, com muitas vénias para a sorridente senhora, no final de uma brilhante operação militar, na noite em que não prendemos o Henrique Tenreiro.

segunda-feira, maio 05, 2014

Pela hora da "troika"

Às vezes, percebemos que outros dizem melhor do que nós aquilo que pensamos. Um dos mais lúcidos observadores da vida portuguesa contemporânea, Viriato Soromenho Marques, sintetizou há dias no DN precisamente o que penso sobre a nossa situação económica e financeira, num artigo intitulado "Mais perdas do que ganhos". Aqui fica, com a devida vénia, como era uso dizer-se:

Depois destes três anos de voragem, todos temos a obrigação de estabelecer um balanço do "programa de ajustamento". Na minha leitura, os ganhos são frágeis e conjunturais, enquanto as perdas são estruturais, e algumas até irreparáveis. O equilíbrio das contas externas é a nota positiva, mas uma análise mais fina revela que ele só ocorreu devido a uma redução das importações, em virtude da contração da procura interna. Por outro lado, a redução da despesa pública, como na saúde e na educação, ultrapassou em muitos casos a linha vermelha da entropia de instituições e serviços. A redução do défice foi obtida através de uma austeridade mais baseada no aumento dos impostos do que em cortes inteligentes da despesa. Os falhanços estruturais são imensos. Desde logo uma dívida pública que não cessa de aumentar (e a redução da dívida foi o motivo deste programa!), e cuja gestão futura se assemelha a uma roleta russa. O aumento vertiginoso do desemprego e a explosão da emigração criam problemas sociais permanentes e alienam recursos humanos válidos e insubstituíveis por um período que só poderá ser de longa duração. A redução do PIB e o aumento da pobreza demorarão anos a ser compensados por taxas anémicas de crescimento. Uma trajetória que arrisca a deflação, aumenta ainda mais os custos do crédito e do investimento, que seriam indispensáveis para o aumento da competitividade. Como coroa do desaire, a gestão danosa dos ativos públicos, através de privatizações que lesam o interesse nacional, reduzem o Estado a uma entidade virtual, incapaz de se assumir como um criador de estratégias que compensem a total dependência em que o País se encontra de decisões alheias. E o facto de este cândido balanço não ser unânime revela que, mesmo no plano da ética pública, nenhuma lição parece ter sido aprendida.

"Las veladoras"

Faz parte do circuito turístico obrigatório de Havana uma passagem pela moradia onde viveu Ernest Hemingway. Embora o escritor, cujas simpatias progressistas eram conhecidas, não tivesse por ali permanecido muito tempo em pleno período castrista, a sua "Finca Vigia" (curiosamente, a residência do presidente do governo regional da Madeira também se chama "Quinta Vigia") surge subliminarmente inserida na geografia afetiva de que a Revolução cubana se reivindica. Note-se, de passagem, que quinta, casa e recheio foram nacionalizados depois da queda de Fulgêncio Baptista, como a muitas outras propriedades iria acontecer em Cuba.

Há anos, durante uma visita que o meu colega embaixador português em Havana tinha preparado para nós à "Finca Vigia", estava incluído um "tour" pelo interior da casa que, não sendo muito grande, tem a curiosidade de manter alguma "memorabilia" do escritor, em especial alguns milhares dos seus livros, coisa que me divertiria observar, porque por aí ficaria a ter uma ideia daquilo que interessava a quem tão magnificamente escrevia.

Chegados à propriedade, nos arredores da capital, deparou-se-nos um inesperado problema. No dédalo burocrático que o sistema cubano ainda mantinha (e desconfio que manterá), dentre a documentação que o meu colega apresentou à responsável, faltava uma autorização de uma qualquer entidade da área cultural. Sem essa assinatura ou esse carimbo, estava definitivamente comprometida a possibilidade de entrada.

Simpática, a senhora fez algumas diligências telefónicas, desfez-se em desculpas, mas ordens eram ordens. Aliás, esclareceu, talvez para suavizar a nossa desilusão, que as autorizações para visitas ao interior eram muito raras, contando-se não mais do que uma dezena por ano. Mostrou-nos, a propósito, um livro de honra onde figurava a assinatura de uma "muy importante personalidad" que tinha, meses antes, tido esse privilégio. Tratava-se no embaixador da Macedónia junto das Nações Unidas, curiosamente um colega que eu conhecia bem.

Bom, se não era possível a visita, far-se-ia uma volta a pé à moradia, olhando-se o seu interior através das portas envidraçadas e das janelas, a maioria das quais estavam abertas. Não sendo a mesma coisa, ficava-se com uma perspetiva generosa da casa. A nossa guia foi-nos acompanhando, com grande amabilidade, apontando as diversas áreas da habitação e chamando a atenção para alguns pormenores da decoração e equipamento.

À medida que a visita prosseguia, fui-me apercebendo de que, no interior da casa, se movimentavam três outras senhoras, que nos sorriam e se iam afastando, como para não perturbar a nossa visão. De camiseta branca e saia travada muito curta (uma "moda" que eu já tinha visto reproduzida noutros mundos do "socialismo real", mesmo se, como era o caso, estava algo inadequada ao perfil físico das senhoras), não pareciam desempenhar um trabalho muito evidente.

Não sem alguma disfarçada ironia, mas com real curiosidade, perguntei o que faziam aquelas pessoas. A resposta foi pronta: "Son las veladoras", respondeu-me a nossa guia. Inquiri o que eram as "veladoras" e foi-me explicado que a sua função era acompanhar as visitas ao interior da casa, pela qual "velavam", servindo simultaneamente de guias. "Mas não me disse que, no ano passado, apenas houve meia dúzia de visitas autorizadas ao interior da casa". Sim, claro, foi-me confirmado. "Então, nesse caso, o que é que elas fazem?" Pelo olhar do meu colega embaixador e da sua mulher dei-me conta que talvez tivesse excedido a minha quota razoável de curiosidade inquisitiva. A minha interlocutora, contudo, não se descompôs e logo respondeu: "Lo que hacen? Pues allí están para acompañar a los visitantes. Quando los hay, por supuesto!"

Nestes tempos em que dizemos um "até jà" à "troika", cujas sábias políticas nos trouxeram uma taxa de desemprego que vai ficar nos anais da nossa História e no sacrifício forçado de muitas e muitas famîlias, pergunto-me se o "benchmark" cubano de políticas ativas de combate ao desemprego não deveria inspirá-los.

(Roubei a foto a Ana Marques Lopes, do FaceBook)

domingo, maio 04, 2014

O Mondrões e as flores

Dizem-me que hoje é dia da Mãe. Nunca percebi por que luas deixou de ser a 8 de dezembro, como aprendi em criança. Nessa Vila Real da minha infância, duas ruas disputavam então o título das mais bonitas passadeiras de flores da cidade, que os vizinhos faziam pela Páscoa: a rua Avelino Patena e a rua Alexandre Herculano. Tenho a "glória" única de ter nascido na primeira e ter vivido na segunda. As restantes ruas da cidade, onde também se faziam passadeiras, nunca estiveram à altura de competir com aquelas duas artérias. Com os anos, as passadeiras deixaram de se fazer. E é pena.

Os desenhos da rua Alexandre Herculano (na imagem) eram da autoria do senhor Lima, proprietário do Café Imperial. Com fama de comunista, sempre mal encarado e desagradável para os seus clientes, o homem só enchia o seu café na noite de Consoada, onde tradicionalmente se alojavam os "hereges" que insistiam em tomar uma bica profissional ou os viciados, a caminho da missa do Galo. Os seus desenhos das passadeiras eram, contudo, dificilmente batíveis (neste caso pelo desenho do senhor Claro, que orientava a rua Avelino Patena).

Para a composição das passadeiras, ia-se na semana anterior pelos montes, em busca de flores. Integrei essa operação algumas vezes. "Briefadas" pelo senhor Lima, um grupo de senhoras avançava de carro para zonas rurais tidas como podendo proporcionar as cores das pétalas desejadas pelo "designer". Eram levadas pelo Mondrões, um motorista reformado que morava lá na rua e cuja contribuição para o empreendimento era conduzir um grande automóvel emprestado à organização. O Mondrões era de poucas falas, resmungão, pouco aberto a aceitar comentários sobre o modo como dirigia. Contavam as senhoras, durante as noites em que no "Ninho" (uma instituição de educação de crianças, também da rua), se fazia a separação das flores, que a condução do Mondrões proporcionava momentos de grande emoção, fruto do estado de quase permanente embriaguês em que o homem andava. Mas a história foi-lhe justa: não há nota de qualquer acidente ocorrido.

É ainda sobre o Mondrões que corria na minha rua um episódio célebre. Um dia, na tasca do Morrinha, também lá pela rua, ao Mondrões foi dado a provar um vinho branco cuja pipa acabara de chegar do produtor. Pedia-se a sua abalizada opinião. O homem, porém, tinha acabado de emborcar uma dose idêntica de vinho tinto, pelo que o seu estómago terá tido um ligeiro incómodo. É então que o Mondrões, mirando o ventre proeminente, tem um "diálogo" com os dois vinhos: "Ou vos aguentais os dois aí dentro, ou vamos os três para o chão!"

sábado, maio 03, 2014

Veiga Simão

Em 1972, ao tempo em que era presidente da Assembleia Geral da Associação de Estudantes do ISCSPU (isso mesmo, com um "U"), tendo sido recentemente reeleito para o mesmo cargo, recebi um ofício do Ministério da Educação Nacional, que era dirigido a mim, na qualidade de presidente cessante, no qual se referia que, por despacho ministerial, toda a lista associativa eleita tinha sido "homologada" (a "homologação" era obrigatória antes da entrada em funções), com a exceção dos nomes de Fausto Bordalo Gomes Dias (esse mesmo, o Fausto, cantautor) e... de mim próprio. Estávamos na "primavera" marcelista. Três anos antes, em início de 1969, uma outra lista associativa, de que eu também fazia parte, fora "não homologada", sendo ministro Hermano Saraiva. Desta vez, o ministro era Veiga Simão, que hoje morreu.

As voltas da vida são muito curiosas. Fui embaixador junto da ONU, lugar que Veiga Simão viria a ocupar. Fui embaixador no Brasil, lugar que Hermano Saraiva também ocupou. Os dois ministros da Educação que não "homologaram" duas das eleições democráticas em que eu fora eleito viriam a ser sucedidos por mim naqueles postos.

Em 1997, Veiga Simão foi convidado por António Guterres para ministro da Defesa. Lembro-me que, para mim e para outros colegas de governo, alguns dos quais também antigos dirigentes académicos, a nomeação de Veiga Simão constituiu uma surpresa e "não caiu" muito bem. Mas, vistas as coisas com serenidade, não havia razão para tal. Veiga Simão já havia sido ministro da Indústria de Mário Soares, fora deputado pelo PS, tinha ocupado postos importantes na administração pública democrática e a sua elevada qualificação técnica era consensual. Além disso, o seu comportamento político depois do 25 de abril revelou que, tal como algumas outras figuras da administração caetanista, tinha aderido com indiscutível sinceridade às ideias democráticas. Daí a poder ser visto por alguns de nós como "one of us" ia, contudo, alguma distância.

Em substituição de Jaime Gama, acompanhei Veiga Simão a duas reuniões ministeriais da defunta UEO (União da Europa Ocidental), uma vez a Roma, outra a Bremmen. As delegações eram compostas pelos responsáveis dos Negócios estrangeiros e da Defesa de cada país, devendo tomar a palavra um após o outro. Sendo ministro, Veiga Simão chefiava naturalmente a delegação portuguesa. Porém, como logo se verificou desde o início da reunião de Roma, os responsáveis governamentais dos Negócios estrangeiros tomavam a palavra antes dos da Defesa. Deixei que fosse Veiga Simão a ter a perceção de que, não obstante eu ser secretário de Estado e o "número dois" da delegação, cabia-me falar antes dele. Sem entusiasmo mas com garbo, vergou-se à regra que estava a ser seguida à volta da mesa e disse-me para avançar. Assim fiz. No final, recordo-me da estranheza, não isenta de algum prazer, com que terminei a minha intervenção: "e agora, cedo a palavra ao meu colega Veiga Simão, ministro da Defesa do meu país". Como iam longe os tempos da minha "não homologação"! 

Um dia perguntei a alguém que conhecia bem o percurso político de Veiga Simão o que é que verdadeiramente impressionava na personagem. A sua grande inteligência, a abertura à modernidade e o seu entusiasmo, foi a resposta que retive. Julgo que um forte sentido de serviço público seria de acrescentar, com justiça, àquela descrição.  

sexta-feira, maio 02, 2014

Maria Barroso

Faz hoje 89 anos uma senhora por quem tenho, de há muito, um grande respeito: Maria de Jesus Barroso. É uma das figuras públicas portuguesas que, ao longo de todos estes anos, nunca me desiludiu. Combatente contra a ditadura, mulher coragem em tempos pessoais e políticos muito difíceis, mostrou-se sempre, ao lado de Mário Soares, com uma dignidade de que o país se deve orgulhar, consagrando-se como uma personalidade com uma dimensão cultural e cívica que é muito rara entre nós. Escrevo isto com o à-vontade de quem está longe de ser um seu íntimo ou mesmo próximo. Mas não posso esconder a admiração que sinto pela sua coerência e a sua verticalidade.

Parabéns, doutora Maria de Jesus!

O meu tacho

Já estava à espera, confesso! Fui convidado pelo engº José Bento dos Santos para integrar um grupo de trabalho, que não implica qualquer custo para o Estado e que não terá a mais leve remuneração, para desenhar uma proposta com vista à promoção da gastronomia portuguesa no estrangeiro. Conhecendo eu "do que a casa gasta", já aguardava as ironias do costume. E, também devo confessar, estava até curioso em fazer "saltar a tampa".

Pois é! Com mais dez comparsas ("confraria governamental dos bons garfos", diz um blogue finaço, afiando o título), vou tentar ajudar a dar expressão internacional a uma das riquezas culturais do nosso país.

Por comentários neste blogue, fica claro que esta minha "cedência" é já considerada por alguns como um sinistro conluio com a maioria que nos (des)governa. Felizmente, o ridículo não mata e, neste caso, também não engorda...

Ana Sousa Dias

Por onde anda Ana Sousa Dias? Que é feito de uma das mais cultas e capazes jornalistas televisivas, que no seu programa "Por Outro Lado" fez um fascinante inventário falado do país, com algumas magníficas conversas, que valeria a pena estarem disponíveis em video, como testemunho vivo de uma geração portuguesa? 

Ao final da noite de ontem, na RTP Memória, assisti a um interessante diálogo com Jorge Sampaio, em 2004, com uma serena condução de conversa que constitui a prova provada de que a inteligência, quando posta ao serviço da informação e da cultura, se substitui com larga vantagem à agressividade inquisitiva e à busca pispineta da polémica e da graçola fácil.

Repito: por onde anda Ana Sousa Dias?

quinta-feira, maio 01, 2014

Paris, hoje

Há muitos anos, estando em Paris numa manhã do primeiro dia de maio, estou certo que não perderia o espetáculo que sempre é a manifestação sindical e popular que, da Nation até à Bastille, congrega o descontentamento, sob "pancartes" cheias de apelos aos "landemains qui chantent". A capital francesa foi em tempos a inesquecível "Meca" dessa revolta que atravessou uma parte da geração a que pertenci, que nos fazia vir de Lisboa por aqui em busca de emoções e de livros proibidos, que mobilizava a nossa curiosidade nos comícios da Mutualité, que nos levava a ir visitar a obra que Niemeyer desenhou na place Colonel Fabien, para sede dessa estrela ultracadente que hoje é o PCF. Nesse tempo a que o 25 de abril pôs termo, cruzávamos por aqui as nossas esperanças com quantos tinha decidido não ir à guerra, entre uma "demi" e um café avaliávamos as hipóteses de sobrevivência do regime luso, comprávamos o "Le Monde" como substituto da liberdade de informação de que não dispúnhamos "lá em baixo". 

Nesta manhã chuvosa deste primeiro dia de maio, numa esplanada junto à Pont d'Alma, perto da "chama" dourada que revoadas de estrangeiros equivocados continuam a pensar que tem alguma coisa a ver com o túnel que passa por debaixo, onde a princesa Diana perdeu a vida, na existência sempre em férias que grande parte da realeza e adjacências teima em levar, dou comigo a pensar que o mundo mudou muito. Embora a revolta popular continue, não obstante a "manif" ter agora, com o desemprego crescente, razões maiores para gritar palavras de ordem contra a ordem, a Europa mudou e a França terá até mudado mesmo muito mais do que ela. Anteontem, o governo socialista francês conseguiu ver aprovado no parlamento um plano "de rigueur", uma expressão detestada no vocabulário político deste país, mesmo pela direita. Um primeiro-ministro que tem um mês de exercício de poder ousou obrigar o seu partido a colar-se à evidência dos factos e anunciou, qual Dylan, que "the times they are a-changing", originando com isso uma defecção de cerca de quatro dezenas dos seus colegas, que leem de outra forma o resultado das recentes eleições municipais e já se prepararam para cavalgar politicamente a "abada" histórica que o sufrágio europeu deste maio por aqui vai ser o inferno para o governo Hollande. 

Medidas as distâncias, quase que pode dizer, ironicamente, que, em Portugal, as coisas correm em sentido inverso, com a esquerda a aproximar-se inexoravelmente do poder. "Interesting times", apetece-me dizer, embora ("cruzes"!) longe do significado da maldição chinesa que crismou a famosa expressão.

quarta-feira, abril 30, 2014

O "número"

As negociações sobre os fundos europeus acabam sempre naquilo que se convencionou designar como o "envelope nacional", isto é, o montante que, no final do dia, vai corresponder a cada país, a "fatia" do orçamento que cada Estado pode reivindicar como "ganho" na batalha diplomática que, todos os sete anos, tem lugar no seio da União. O "número" final é um dado essencial para se convencer a opinião pública de que se "ganhou a guerra": é comparado aos valores obtidos noutros orçamentos plurianuais anteriores, segundo especiosos critérios que cada governo adota para se vangloriar da qualidade da sua negociação, procurando os melhores argumentos para contrariar as prováveis críticas das oposições. Tanto se pode medir o "envelope" com os anteriores, em termos absolutos, como, quando dá jeito, se pode usar como medida os impactos que essas ajudas terão sobre o PIB. E, sem exceção, nas derradeiras semanas, deixam-se cair para a comunicação social "terríveis" expetativas para, no final, "derrotá-las" com fragor, numa luzida vitória virtual... A Comissão e a presidência de turno, que fecha a negociação, estão quase sempre dispostas a ajudar os Estados a "maquilhar" os menos bons resultados, com a atribuição de ajudas "laterais" que dificultam a contabilidade dos analistas, bem como pela introdução de "facilidades" casuísticas que magnificam alguns números. O essencial é que cada Estado possa regressar "a casa" com uma "vitória"! Um bom exemplo desta criativa coreografia foi a negociação há um ano levada a cabo pelo atual governo português, cuja "jonglerie" argumentativa, somada a uma descuidada leitura da oposição, disfarçou um resultado que não passou de sofrível.

Um dia, contarei por aqui a minha versão daquilo que foi a negociação das "perspetivas financeiras", para o período entre 2000 e 2006, na qual tive algumas responsabilidades, quando no governo. Hoje, vou um pouco mais atrás para referir um episódio que ocorreu durante a fixação do chamado "pacote Delors II", o segundo quadro financeiro de que Portugal beneficiou. Foi-me contado há pouco, por uma testemunha presencial, num jantar em Paris.

As negociações iam longas, nessa última noite de Bruxelas. O dia fora complicado, os tais "envelopes" nacionais subiam ou desciam, na boataria dos corredores, de acordo com a capacidade negocial dos Estados e com a evolução da boa vontade da Comissão, cujo poder era, à época, decisivo. A certo passo, foi decidido fazer uma pausa nas negociações, "para consultas". As delegações desceram a escada em caracol do edifício do Berlaymont (onde na altura funcionava o Conselho de ministros e hoje tem sede a Comissão), recolhendo às respetivas "salas". A expetativa mantinha-se grande. O "número" do "envelope" português mantinha ainda várias versões, umas mais simpáticas que outras. De repente, entrou na nossa sala (é sempre mais do que uma sala mas diz-se "a sala") um funcionário português, um técnico geralmente muito bem informado. A indicação que trazia suspendeu todas as conversas: "Os espanhóis já têm um "número". É "x" ". A ser verdadeira, era muito importante essa referência, porque isso nos ajudava a medir melhor o que estavam a preparar para nós como proposta. Alguém, mais cético, inquiriu como é que o funcionário tinha sabido. A resposta ficou nos anais: "Foi um contínuo que andava pela sala espanhola a servir cafés que ouviu o "número". É português..."

terça-feira, abril 29, 2014

Blogómetro

Nunca percebi bem o que valem estas estatísticas, mas para alguma coisa devem servir. Há dias, chamaram a minha atenção para a posição do "Duas ou três coisas" no "Blogómetro", que mede a leitura dos blogues portugueses.

Passei por lá ontem. E que vi eu? Este "pobre" blogue pessoal a ser mais consultado que "vedetas" da blogosfera tais como "5 dias", "Corta-fitas", "Estado Sentido", "Mesa Marcada", "Abrupto", "Aspirina B", "De Rerum Natura", "Portugal dos Pequeninos", "Da Literatura" e coisas assim. Mas, claro, bem abaixo desses "papas" que continuam a ser "Blasfémias", "Aventar", "31 da Armada", "Jugular" e "Delito de Opinião".

Esta coisa da leitura do que escrevemos vale tanto como os "spreads": varia com os humores dos mercados. Mas lá que sabe bem ter a certeza de que não estamos a falar "p'ró boneco", lá isso sabe! Por isso, e uma vez mais, muito obrigado a quem nos procura.

As praxes das jotas

Leio que o CDS, motivado pelo escandaloso caso ocorrido em Braga, estaria disponível para agravar o enquadramento legislativo das "praxes", indo agora bastante mais longe do que aquilo que, com o PSD, acordara há meses, depois do sórdido episódio do Meco.

Porém, a bancada laranja, que tão pressurosa se mostrou na submissão a referendo (!) da questão da co-adoção, parece recuar agora em colocar um travão mais nos desmandos dessa canalha que se delicia, numa vingança travestida de "acolhimento" dos novos alunos, em atos de humilhação e rebaixamento, em muitos casos sob o olhar, no mínimo complacente, das autoridades académicas.

Por que é que isto acontece, por que razão a maioria se divide neste tema? Ora, ora! Porque há duas ou três eleições à vista, porque as "jotas" (e o CDS, na matéria, ainda vai nos tempos do "táxi") temem perder votos nesse mercado estudantil, cada vez mais embrulhado de luto. E os socialistas, por onde andam neste tema? Firmes na condenação dessas práticas, ecoando aquilo que a Europa avançada já determinou a propósito dessa encapada reacionarice? Pois isso! 

Seria interessante, de facto, ver o nosso parlamento tomar uma posição, frontal e clara, que, de uma vez por todos, pusesse com dono as famigeradas "praxes". Talvez sugerindo que, em sua substituição, os estudantes aproveitassem o tempo para estudar. E, de passagem, que proibissem a obscena "sponsorização" das "queimas das fitas" pelas empresas de bebidas alcoólicas, que atulham os serviços de urgência hospitalares de comas alcoólicos. Há um défice de coragem e um superávite de interesses.

Geografias



A tentação de afirmar que tudo mudou com o 25 de abril é muito forte no que toca à política externa. Da ditadura obsoleta, politicamente isolada, sustentáculo de uma presença colonial perdida historicamente no tempo, emergiu, de um dia para o outro, uma súbita esperança democrática e de libertação, feita de alegria florida nas ruas. Uma esperança em que, contudo, alguns no mundo não deixaram de vislumbrar certos riscos.

O facto de não ter surgido, na convulsão política pós-Revolução, uma séria proposta no sentido de Portugal abandonar a NATO revelou a consciência subliminar de que o país tinha condicionantes geopolíticas a que não podia escapar. A geografia prevaleceu, mas também mudou: umas vezes mudou ela própria e nós com ela, outras vezes fomos sujeitos involuntários dessa mudança.

Mudou no plano físico, com o fim das fronteiras e com os acessos a tornarem-nos menos periféricos, num choque de modernidade que foi uma fantástica revolução silenciosa. Mudou fortemente no plano político, com a integração europeia a determinar um quadro de responsabilidades que nos veio a tornar parceiros de um projeto mais vasto, eticamente sustentado, com uma coerência que incorporámos na nossa própria matriz de afirmação. Mudou com a recuperação da plena normalidade com a nossa vizinhança imediata, com a descoberta de uma vocação mediterrânica que levou à fixação de um interessante laço com um mundo islâmico, que passou a ver em nós um interlocutor atento. E mudou também com muitos outros mundos, de que o fim da ditadura e do colonialismo nos aproximou.

Uma nova geografia "de afetos" conduziu ao gradual estabelecimento de um quadro institucional prioritário com Estados que falam a nossa língua e com os quais tentamos reconduzir-nos a uma cooperação equitativa, depois daquilo que foi uma longa e traumática relação colonial. E alterou também o nosso posicionamento no quadro multilateral, onde nos foram abertas oportunidades para o exercício de cargos e para a execução de acções internacionais relevantes, tal como "exportar segurança", com intervençoes de mérito em operações de paz, através das nossas Forças Armadas.

Numa dimensão mais humana, a partir do 25 de abril, foi possível estabelecer um modelo de enquadramento democrático da nossa diáspora, garantindo-lhe um papel na vida política interna e procurando torná-la um actor da nossa dimensão externa. E, mais tarde, convertemo-nos em receptores de imigrantes, sendo hoje reconhecido positivamente o modo como acolhemos as "muitas e desvairadas gentes" que nos enchem as ruas de diversidade.

Fomos pelo mundo, mas nunca saímos do Atlântico, porque ele é a constante que nos sobredetermina. Muito para além do ridículo seguidismo das Lages, em 2003, ele continua a ser um quadro estruturante para a preservação dos nossos interesses estratégicos. Sem abandonar o investimento no projeto europeu em que nos empenhámos, sem descurar a CPLP e várias outras dimensões, temos todo o interesse, enquanto país, em saber recolocar-nos no centro da nova relação transatlântica que se desenha. Isso será feito quando voltarmos a ter uma política externa, à altura das nossas múltiplas geografias  depois do patético interlúdio de silêncio internacional que estamos a atravessar. Não tardará muito.


(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

O sorriso do Álvaro

São tantos os mortos! Passam os dias e não passa quase um dia sem que não sejamos surpreendidos pela morte de alguém que conhecemos. Um amigo dizia-me que, num mesmo dia, fora a três missas celebrando a morte (ou a passagem do sétimo dia da morte) de alguém. Isto está a ficar pela hora da morte, podia dizer-se, se tivesse graça.

Ontem, olhava as notícias da desaparição de Vasco Graça Moura quando uma cara risonha, na fotografia de um jornal, chamou a minha atenção. Era um homem de riso aberto, franco, por detrás do qual pressenti as gargalhadas que esse mesmo sorriso sempre coroava. Era o Álvaro Garcia de Zúñiga. Tinha sido enterrado nessa tarde.

Conhecemo-nos em São Paulo, há já uns bons anos. Era uruguaio, mas o mundo era a sua terra de adoção. Com a Teresa, com o registo mais sereno da Teresa, o Álvaro fazia um par curioso, ele mais histriónico e agitado, de quem busca sempre o mundo, como se ele sempre lhe fugisse. Ela num rodopio de projetos, sempre a caminho de. Encontrámo-nos depois por aí, em alguns sítios do acaso, quase sempre sem nunca termos combinado nada. A última vez, lembro-me, foi em Paris, onde ele e a Teresa nos convidaram para um debate, creio que num convento próximo da Gare du Nord.

O Álvaro era encenador, escritor, músico. Era um homem cheio de ideias, culto, criativo. Com o seu eterno sorriso e o seu português pedido de empréstimo, ele para quem as línguas eram um instrumento de cuja mistura fazia nascer as coisas, transmitia sempre uma boa onda, com a Teresa a seu lado, no seu sorriso giocôndico, procuradamente sereno. Agora, a terra fugiu debaixo dos pés à Teresa, como alguém dela me dizia, há poucas horas. Onde? Num velório, claro!

O nosso abraço sentido, Teresa.

Notícias da aldeia

Nas aldeias, os cartazes das festas de verão, em honra do santo padroeiro, costumam apodrecer de velhos, chegando até à primavera. O país pa...