segunda-feira, janeiro 08, 2018

Mário Centeno


Há erros de facto. Há lapsos de avaliação. Há perspetivas de opinião. Há ousadia jornalística. Há luta política.

E também há pura e miserável canalhice. É o caso.

Um forte e solidário abraço ao Mário Centeno.

Diplomacia lírica


O estatuto familiar tinha, no passado, um imenso peso na profissão diplomática. Várias carreiras se fizeram, imerecidamente, à sua sombra. Com a democracia, essa influência, longe de ter desaparecido por completo, atenuou-se bastante e a meritocracia tende hoje a prevalecer na gestão da casa. 

Alguns funcionários mais antigos e conservadores eram, contudo, muito condicionados pela sonoridade de certos apelidos, em especial se a eles tivessem associadas conotações aristocráticas, a que certos setores da casa sempre manifestaram uma patética reverência.

Conta-se uma história passada no pátio de entrada das Necessidades. Numa certa manhã, o embaixador secretário-geral do ministério, ”chefe da carreira”, foi surpreendido, ao sair do carro e preparar-se para se dirigir ao seu gabinete, por um canto lírico, bem alto, que saía de uma das janelas das repartições que davam para o pátio. A cena era, pelo menos, insólita. As Necessidades não eram propriamente S. Carlos e não era curial que uma ária se soltasse do lado dos serviços.

O embaixador, que tinha um ar antipático e carrancudo, que se pretendia intimidatório, perguntou ao Matos, o porteiro que, por décadas, geriu a entrada no MNE, se sabia quem era o “cantor”.

Conhecendo o Matos, creio que terá respondido, com a formalidade que lhe era própria: “Saiba V. Exª, senhor secretário-geral, que se trata do senhor doutor (...)” e disse o nome de um colega, que julgo era detentor de um título nobiliárquico, com um nome de família relativamente sonante.

O embaixador, cuja vontade, no instante, talvez fosse de mandar dar uma “rabecada” ao inconveniente intérprete lírico, rendeu-se aos “powers that be” da sociedade e terá comentado, à medida que se afastava, naquele andar enrolado que era o seu: “Bela voz! Tem uma bela voz!”. E saiu para o claustro.

Nunca ouvi cantar aquele nosso colega, pessoa aliás bem estimável. Mas a menos que seja pela graça do trocadilho, posso presumir que a sua qualidade lírica não deveria ser assaz notável, porque, com a crueldade típica da casa, era conhecido nas Necessidades pelo “tenor maligno”...

domingo, janeiro 07, 2018

Gall


Hoje é o dia em que o “Les sucettes”, talvez mais do que o “Poupée de cire, poupée de son”, vai ser recordado nas rádios e televisões francesas. É que France Gall, neste que é o ano certo para se fazer 70 anos, decidiu partir. E Serge Gainsbourg, lá onde estiver, deve estar com o seu sorriso de sátiro, o mesmo que sempre usava quando interrogado sobre a intencionalidade escondida no genial elogio aos chupa-chupas que decidiu escrever. Recordemos a música aqui.

No dia da morte de Mário Soares


Em 25 de janeiro de 1969, vi, pela primeira vez, Mário Soares. Foi no cemitério dos Prazeres, no funeral de António Sérgio, um ato reprimido pela polícia da ditadura. Soares estava no centro da manifestação sobre a qual a polícia de choque carregou violentamente.

Mário Soares morreu a 7 de janeiro de 2017. Hoje, quase 48 anos depois daquela data (e, por coincidência, 48 anos durou também a maldita ditadura), regresso aos Prazeres para uma homenagem a Mário Soares, no local onde está sepultado.

Ao eventual leitor que esteja em Lisboa e que reconheça que a liberdade e a democracia de que usufrui algo devem a esse homem, que por elas lutou quase até à hora da morte, pediria um pequeno esforço e faço um convite: venha juntar-se a nós, às 16 horas deste domingo, no Cemitério dos Prazeres.

sábado, janeiro 06, 2018

Carlos Heitor Cony


Acabo de saber que morreu Carlos Heitor Cony. Durante todo o tempo em que vivi no Brasil, e muitas vezes depois disso, fui leitor das suas curtas mas “sumarentas” crónicas no “Estadão”. Li, além disso, alguns dos seus livros. Era um magnífico contador de histórias, num português de lei, com humor e ironia culta. Um imenso cronista, na escola de Nelson Rodrigues ou de Luiz Fernando Veríssimo.

Um dia, no Rio de Janeiro, numa das minhas visitas à Academia Brasileira de Letras, fui-lhe apresentado. Ele era um dos 40 "imortais" daquela casa.

Por coincidência, uma semana antes desse encontro, tinha acabado de ler a sua autobiografia, intitulada "Quase memória". Disse-lho. O escritor, com aquele ar benevolente de quem acredita pouco que os diplomatas possam ler muito, retorquiu: "Ah! sim? Espero que tenha gostado..." E passou adiante. Aí eu insisti: "Diga-me uma coisa! Ao ler o livro fiquei com uma curiosidade: quando fala daquela falsa viagem do seu pai a Itália, para enganar os amigos, isso passou-se mesmo assim?". Cony abriu muito os olhos, "viu-me" pela primeira vez e exclamou: "Oh! Mas o embaixador leu mesmo o livro!"

Quem escreve morre “menos”. Deixa a escrita em herança e, como usufrutuários, quem o quiser continuar a ler.

A nossa diplomacia




Gostei de ver o presidente da República e o ministro dos Negócios Estrangeiros pronunciarem-se, em termos altamente elogiosos, há dias, durante o Seminário Diplomático anual do MNE, sobre a carreira diplomática portuguesa. Dizem-me que o primeiro-ministro terá dito basicamente coisas similares. 

Vai para cinco anos que deixei aquela casa, mas fico sempre muito satisfeito quando vejo reconhecida a qualidade do trabalho dos funcionários que integram aquele que é um dos corpos da Administração Pública onde continua a imperar uma elevada cultura de serviço público, com profissionais da maior qualidade, que garantem uma presença prestigiada de Portugal pelo mundo. 

Creio, porém, que o país não dá devida conta da importância que esse corpo de funcionários tem tido na obtenção de muitos dos êxitos nacionais na ordem externa, nos mais variados domínios. É justo, por isso, lembrá-lo.

A crítica invejosa que, demasiadas vezes, atinge a diplomacia portuguesa, fruto de despeitos corporativos e de algum populismo miserabilista, tem os seus cultores em certos setores da comunicação social, raramente aberta a escutar, em contraponto, quantos diariamente beneficiam da ação desse dedicado corpo de funcionários. Porquê? Porque dizer mal é o que “rende”.

Há algumas “ovelhas negras” na carreira diplomática? Há elementos que mostram menos empenhamento e que cometem erros? Claro que sim! Só por milagre isso não aconteceria. Ocorre em todas as profissões. 

Ao longo da vida, fui algumas vezes confrontado com queixas sobre o comportamento pontual de alguns colegas, que, no parecer desses meus interlocutores, não tinham estado à altura daquilo que era legítimo ser-lhes exigido. 

Sem exceção, dizia-lhes: queixem-se! Não em “bocas” para a comunicação social, em notas adjetivadas nas caixas de comentários da redes sociais, na cobardia do anonimato ou com generalizações preconceituosas sobre a profissão. Explicava-lhes que basta uma simples carta, assinada e com factos devidamente assinalados, dirigida a quem de direito. Podem crer que terão uma imensa surpresa: haverá sempre uma resposta e o assunto merecerá a devida atenção. 

É que quem não deve não teme e os diplomatas portugueses competentes e cumpridores, que são a maioria, só agradecem que o trigo seja separado do joio.

sexta-feira, janeiro 05, 2018

Reinventar vontades


O presidente da República convidou-nos a reinventar o país do futuro. Sendo o futuro o lugar onde vamos passar o resto dos nossos dias, convém começar já esse esforço. 

A cruel dualidade que o presidente sublinhou em 2017 foi a prova de que não devemos dar nada por adquirido. Somos um país frágil, marcado por um grave desordenamento sócio-territorial, com uma sociedade civil escassamente autonomizada e um tecido público com uma flagrante impotência para proteger, com eficácia, os interesses de muitos dos cidadãos. 

O fantástico salto que Portugal deu nas últimas décadas, na partilha das vantagens do processo europeu, teve efeitos muito assimétricos no seu tecido social e humano. Há um Portugal perdedor, em termos relativos, no banho de riqueza que mudou a paisagem e confortou os bolsos de muitos portugueses. Mais grave do que isso, não parece existir uma estratégia coletiva para reverter essa tendência desigualizadora. Vivemos com um Estado marcado por um tropismo centralista, que prolonga uma tutela paternalista de Lisboa que, desde há séculos, teima em não ceder.

A tragédia dos fogos revelou que Pedrógão não foi um acidente. A repetição, semanas mais tarde, de ocorrências com gravidade similar foi a prova provada de que estamos perante uma endemia estrutural, que pode facilmente emergir noutro contexto – num sismo, numa epidemia, num novo Entre-os-Rios do nosso desespero. 

Foi também a constatação de que o país das decisões fala sempre de fora para dentro do Portugal mais interior, cuja única voz parece ser sempre a da lamentação. Começa a ser insuportável continuar a viver nesta dualidade, que não só é profundamente injusta como induz ineficácia no desejável processo de coesão nacional. 

Há que encontrar rapidamente um modo de trazer para a esfera da reflexão e da decisão setores que delas estiveram, desde sempre, distantes. Nesse contexto, reinventar o futuro implica, em particular, mobilizar ideias e vertentes de ação que associem os mais jovens a um processo de “devolução” de poderes. As universidades e o mundo empresarial moderno são aliados essenciais para esse esforço.

O presidente tem razão. Mas precisamente porque ganhou autoridade como catalizador da resposta institucional ao sofrimento, tem agora de a utilizar e, aproveitando o novo ciclo do principal partido da oposição, somado a alguma instabilidade que ainda atravessa o governo, deve “chamar os bois pelos nomes” e forçar consensos de regime, ajudado pela imensa e entusiasmada plateia que ganhou pelo país. Deixar Belém com um Portugal mais solidário, mais organizado, com uma estratégia de futuro consensualizada para uma década – esse seria um belo presente de Anos Novos que gostaríamos de ter.


quinta-feira, janeiro 04, 2018

Dieta

Sou um fervoroso seguidor das dietas de início de janeiro. Daquelas do ”agora é que é!”. Iniciei a minha no dia 2. Interrompi-a brevemente ontem para um arroz de feijão e salpicão (deixo a prova) num restaurante no Mezio (não sabem onde é? É ali ao lado de Colo do Pito, entre Lamego e Castro Daire). Hoje, atulhei-me de sandwiches mistas, nas seis horas e meia que passei no Conselho Geral Independente da RTP, com almoço pelo meio. Amanhã, infelizmente, vou ter um almoço de trabalho numa função oficial em que não ficaria bem “abster-me”. Na 6ª, sábado e domingo há uns jantares de Ano Novo em casa de amigos e compreender-se-á que não lhes possa fazer a desfeita de parecer “pisco”. Para a semana, sim!, fica assente recomeço a dieta. Logo que possível. Isto é, logo a 12! É que, de segunda a quinta, tenho já quatro almoços marcados. Espero assim poder chegar a meio do mês com menos 300 gramas. Talvez 200 seja um número mais prudente. Mas lá que isto começa bem, disso não restam dúvidas!

quarta-feira, janeiro 03, 2018

A fotografia da praia

Werner Hoyer acaba de ser reconduzido à frente do Banco Europeu de Investimentos, lugar onde já está há seis anos. É um liberal alemão que, por alguns anos, foi secretário de Estado dos Assuntos Europeus, no último governo de Helmut Kohl.

Foi nessa mútua qualidade que nos conhecemos. Chefiámos as nossas delegações nacionais na negociação do Tratado de Amesterdão e criámos, a partir de então, uma relação pessoal muito agradável. Werner é uma figura afável e dialogante, embora muito firme nas suas convicções. Perdemo-nos de vista desde então e só viemos a dar um abraço, há uns anos, num encontro casual de rua, numa noite, na Promenade, cheia de neve, no centro de Helsínquia.

Um dia, nos tempos de governo, convidei Werner Hoyer para vir a Lisboa. Ele tinha-me recebido, meses antes, no seu espartano gabinete de Bona e, ao entrar no espaço que eu ocupava no Palácio da Cova da Moura, ficou verdadeiramente deslumbrado.

O gabinete do secretário de Estado dos Assuntos Europeus, com azulejos nas paredes, um teto de madeira e belas pinturas nas portas, é, na minha opinião, um dos mais bonitos espaços de trabalho de qualquer governante português. Expliquei-lhe que, naquele mesmo local, tinha tido lugar a reunião dramática da última tentativa de golpe de Estado para derrubar Salazar, em 1961. E que aquele espaço fora também o gabinete do general Spínola, chefe da Junta de Salvação Nacional, nos dias revolucionários de 1975.

Portugal desenvolvia, por esse tempo, um esforço diplomático para tentar convencer os nossos parceiros de que a nossa aproximação aos critérios para a entrada na moeda única europeia estava a fazer-se de uma forma sustentada.

A moeda única era uma aposta política mas era, igualmente, um teste à nossa credibilidade. Os países da Europa mais a norte mantinham fortes dúvidas de que Portugal pudesse vir a reunir condições para partilhar o futuro euro. Ainda não havia por ali nórdicos, mas a Alemanha e a Holanda eram, visivelmente, os mais reticentes. Para os alemães, que, no processo da moeda única iam dispensar o seu tão prestigiado marco, todos os cuidados eram poucos. Em todas as conversas, eu ia sentindo que Hoyer, como liberal ortodoxo que era, embora sem o dizer, desconfiava bastante que Kohl pudesse vir a tomar uma decisão política, de cariz voluntarista, em favor de Portugal, dando menos importância às condições financeiras objetivas do nosso país.

A certa altura da nossa conversa, levei Werner Hoyer a ver o magnífico terraço em frente ao meu gabinete. Estava um belíssimo dia de sol lisboeta e, por qualquer óbvia razão, vieram à baila as praias portuguesas. Foi então que lhe ouvi este comentário: "Tenho algum receio que vocês, em Portugal, façam uma fotografia de praia". Não percebi e, como falávamos em inglês e eu podia ter entendido mal, repeti: "Uma fotografia de praia? O que queres dizer com isso?".

Hoyer sorriu e explicou: "Como sabes, nas fotografias que tiramos na praia, temos sempre a tentação de encolher a barriga, para ficarmos mais elegantes para a imagem. Logo que a fotografia é feita, relaxamos os músculos e lá regressa a barriga. O que eu quero dizer é que, na Alemanha, alimentamos o receio de que Portugal - mas não só Portugal - faça um esforço pontual para cumprir os critérios de convergência, em especial em matéria de dívida e défice, estando preparado para o momento em que a decisão sobre a entrada na moeda única vier a ser tomada mas, depois, passado que seja esse instante, venha a haver um progressivo laxismo e um menor empenhamento no esforço orçamental que vai ser necessário manter para sustentar o projeto monetário."

Já tivemos altos e baixos, mas acho que Portugal, nos últimos tempos, tem dado provas de querer ficar cada vez melhor no retrato.

Os “comunistas” da EAA


No jargão das Necessidades, chamava-se EAA. Era a “repartição” da direção-geral dos Negócios Económicos dedicada às relações com os países da África, Ásia e Oceania. Um mundo! Fui lá cair em maio de 1976, depois de ter estado colocado alguns meses no Gabinete Coordenador para a Cooperação, onde se iniciavam as nossas relações de cooperação com as ex-colónias.

Acabado de entrar na carreira diplomática, em agosto de 1975, ao ser-me perguntado que colocação interna pretendia (o recente 25 de abril permitia essa gentileza formal), referi por escrito que queria ir para o serviço de cifra (que tratava das comunicações e exigia grande confidencialidade) ou para o que tratava das relações com a NATO (onde o secretismo era ainda maior). 

Era uma aberta provocação da minha parte: tinha estado nomeado para o gabinete do MNE do 5° Governo provisório (o governo mais à esquerda da história portuguesa) e, antes disso, tinha andado por áreas radicais do MFA. Ao tempo, imediatamente pós-25 de novembro, era olhado nos corredores das Necessidades como um temível esquerdista, ideia ajudada pelo cabelo comprido, o farfalhudo bigode e a minha inicial relutância em usar gravata. Eu não tinha a menor ilusão de que ninguém me mandaria para nenhum daqueles dois serviços! 

Na EAA, onde estive três anos, tive três chefes, com quem sempre me dei lindamente. Os dois primeiros foram breves, tendo o terceiro ficado cerca de dois anos. Este último era um homem suave, de voz baixa, sorridente, um estilo de chefe com quem era muito agradável trabalhar. Politicamente era bastante conservador, mas isso não destoava da tendência esmagadoramente maioritária na casa.

Notei que, logo que chegado, o novo chefe quis fazer um inventário escrupuloso do modo como as coisas funcionavam por ali. E elas funcionavam bem. Deve ter percebido que nós trabalhávamos bastante e de forma dedicada, que não havia o menor atraso, que a repartição não lhe ia criar quaisquer problemas. 

Desde o início, porém, eu havia notado que manifestara forte curiosidade a meu respeito e de um outro colega - sobre a nossa vida, sobre os nossos gostos, etc. E registei que, por uns meses, esteve particularmente vigilante quanto ao nosso trabalho. Mas tudo sempre em modo sereno e educado. Depois, deu-nos completa autonomia, confiando plenamente em nós. E criámos um ambiente de trabalho excelente.

Passaram muitos meses. Um dia, eu e esse meu colega fomos colocados no estrangeiro, deixando o nosso chefe para trás. Pouco tempo depois, ele próprio seria colocado algures como embaixador. É sempre assim, na carreira.

Decorreram entretanto muitos mais anos. Já não sei onde e como, voltei a encontrar esse meu antigo chefe, de quem ficara amigo e que me fez então uma curiosa confissão: “Quando fui chefiar a EAA, foi considerada uma “missão de risco”. Porquê? Porque você e o outro colega estavam lá. Nem imagina os alertas que recebi! Que eram dois comunistas, gente perigosíssima, que era preciso vigiar com muito cuidado!” Para logo acrescentar: “Mal eu sabia que não iria ter o menor problema, que vocês eram funcionários dedicados e cumpridores, que tudo ia correr às mil maravilhas!”

Não resisti a perguntar-lhe: “E quando é que concluiu que nós não éramos comunistas?”. A resposta foi deliciosa: “Eu, de início, não cheguei a perceber se vocês eram ou não eram comunistas. Mas posso dizer uma coisa: por essa altura, no contacto convosco, cheguei a pensar que se todos os comunistas fossem como vocês, então os comunistas não eram assim tão maus...”

(Dedico este texto aos colegas da EAA: ao Mário Santos, "comunista" como eu, ao Ina Amaral Neto, que cedo desistiu de nos aturar e foi ganhar o seu, ao Malheiro Dias, que nos trouxe a alegria e o gesto largo das andanças sul-americanas, à memória do Ribeiro Gomes, companheiro inesquecível de comezainas e bebezainas e, "last but not least", à nossa benjamim e beleza inspiradora da repartição, a Ivone Carvalho, que, com outro nome, me apareceu por este facebook e me sugeriu este post)

terça-feira, janeiro 02, 2018

O lóbi das mangas soltas

Nestes dias que passo por Vila Real, não consegui ainda aferir se o famoso “lóbi das mangas soltas” continua a vigorar pelas ruas da cidade. O que é esse lóbi? O que o carateriza?

É um vício antigo, geracional, em que provavelmente algumas pessoas nunca repararam. Há por Vila Real, desde há muito, um bando de maduros, renovado pelas gerações, que nunca veste a samarra, a gabardine ou o sobretudo. Coloca essa peça de vestuário pelos ombros e passeia-se sempre dessa forma, faça frio ou chova. Se a temperatura desce, ou a água puxada a vento ameaça a integridade do resto do vestuário, o membro do lóbi tem por gesto reflexo cruzar à frente, com as mãos, a cobertura que traz aos ombros, assim se aventurando, inclinado, cosido às paredes, pelas ruas da urbe. Mas - nunca por nunca - ele cederá a esse gesto de fraqueza que significaria vestir a peça, porque nunca dispensa o ar “négligé” que a prática de a colocar pelos ombros encerra. Talvez porque, à chegada ao café ou à tasca ou a casa, isso lhe permite, displicentemente, deixar cair o adereço sobre uma cadeira ou pendurá-lo num bengaleiro.

O meu querido e velho amigo Zé Araújo, também conhecido por “Foquita”, há muito desaparecido, era um dos mais visíveis cultores dessa arte. Jamais aquela samarra negra lhe foi vista vestida, mesmo nos dias em que o “alvo manto de neve” (“imaginativa” linguagem da imprensa local, repetida a cada nevão, desde as calendas) cobria a sua Avenida Carvalho Araújo. Nunca cuidei em inquirir da razão de fundo desse hábito, mas não me admiraria se me retorquisse, com a ironia seca no esgar, de que “não se deve dar muita confiança ao chiasco”.

segunda-feira, janeiro 01, 2018

Os outros


Embora nascido em Ponte de Lima, o meu pai era de Viana do Castelo. Adorava a sua cidade, a família que tinha por lá, os amigos de infância e aqueles que aí fora criando ao longo da vida. Vivia, desde há muito, em Vila Real, um “exílio” que lhe não podia ser mais confortável e feliz. 

Regressar a Viana era, contudo, outra coisa. Pelo Verão ou em outras férias, as conversas com a mãe, os irmãos e os sobrinhos, bem como com os amigos, na Café Bar ou no Girassol, faziam parte da rota de alegria que era esse regular mas episódico reencontro com a sua terra.

A vida foi fazendo o seu curso. A família de Viana foi desaparecendo, os amigos que por lá tinha também. Cada visita àquela cidade, onde eu teimava sempre em levá-lo, no final da vida, à procura desse outro tempo, foi-se tornando para ele mais penosa, mais nostálgica, cada vez mais vazia de gente e cheia de melancolia. 

O meu pai viveu até aos 97 anos. Nos últimos anos, já não tinha amigos de infância, pior, já não tinha amigos da sua geração ou mesmo da geração imediatamente posterior. A certo passo, percebi que a recordação do passado em Viana, deixou de ter qualquer interesse para ele. Evitava conversas sobre isso. Não gostava de ver fotografias antigas, imagino que porque estas lhe lembravam tempos de uma outra felicidade (e nós sabemos que a felicidade do passado é quase sempre “mais feliz” do que aquela que vivemos). 

Nos seus últimos tempos, o meu pai passou a resistir, quando eu lhe sugeria darmos uma saltada a Viana. Um dia, poucas semanas antes da sua morte, depois de um almoço nas Pedras Salgadas, fui conduzindo devagar por várias estradas, como se ao acaso. Ele adormeceu, ao meu lado. Acordei-o com Santa Luzia à vista. “Mas isto é Viana!”, exclamou, sorrindo, de súbito bem feliz. Levei-o à Praça da República, à Caravela. Não perguntou por nenhuma pessoa. Disse-me, no regresso da tristeza: “Já não conheço por aqui ninguém. Ninguém, mesmo!”. Não era verdade, tinha ainda sobrinhos por lá, mas percebi que seria cruel confrontá-lo com caras que lhe trariam o que já era o insuportável peso do passado uma vez mais de volta. Mas não sei se fiz bem.

Há pouco, um minuto depois da meia-noite, recebi uma chamada telefónica que, não tendo nada a ver com o que escrevi, me suscitou fortemente esta evocação, que dedico a um grande amigo que não sei se a lerá.

2018


No que me toca, não me importava nada que 2018 fosse exatamente igual a 2017. Com os muitos amigos que tenho, com os inimigos que se mantiveram ou revelaram (alguns bem patuscos), com a vida que gosto muito de ter. Nem mais, nem menos. Será pedir muito?

domingo, dezembro 31, 2017

A Revolução como comédia


Entrámos no último dia do ano com o programa televisivo "Governo Sombra" a ter como convidado Arnaldo Matos. O atual "dono" do PCTP-MRPP foi recebido com um tom visivelmente complacente pelos "residentes" do programa, ansiosos por lhe extraírem declarações chocantes e expressões radicais, à altura daquilo a que o velho político sempre habituou o seu auditório. Conhecedor do palco que pisava, Matos não se fez rogado e, no meio de elogios táticos aos anfitriões, esteve à altura da "performance" aguardada, chamando "nazis" aos gestores alemães da Auto-Europa e mostrando compreensão pelos ataques do Estado Islâmico. Foi notório o gozo com que continua a ser recebida a qualificação de "social-fascista" que o MRPP sempre aplica ao PCP. É que o MRPP continua a ser o "enfant chéri" (para ser simpático) de certos meios, que sempre o cobrem com uma espécie de juízo de inimputabilidade, que nos dias de hoje o coloca ao nível de uma caricatura de comédia.

Pena foi, contudo, que ninguém tivesse perguntado a Arnaldo Matos com que direito tomou conta do partido, onde não exerce nenhum cargo eleito. É que isso permitiria a este auto-proclamado porta-voz da classe operária e frequentador do Gambrinus esclarecer com que legitimidade é hoje o depositário e usufrutuário da subvenção pública de centenas de milhares de euros atribuídos anualmente ao partido pelo Estado. Em democracia, os partidos têm de ser os primeiros a praticar, no seu seio, regras democráticas; se o não fazem, não devem ter o direito a dispor dos privilégios que constitucionalmente os beneficiam. Ora no seio do PCTP-MRPP, como é público, vive-se hoje uma ditadura interna protagonizada por Arnaldo Matos, que tomou conta da máquina política e financeira, sem ter sido eleito, como ele próprio revelou no programa. 

sábado, dezembro 30, 2017

Erro técnico

Sei lá bem porquê (e se sei, não digo), lembrei-me há pouco de um célebre episódio ocorrido na imprensa portuguesa, nos anos 80 do século passado. 

Era um tempo tenso, em que o declinante poder militar remanescente, embora titulado já pela sua ala mais moderada, causava ainda engulhos a alguns partidos políticos do eixo do novo sistema político, em crescendo de afirmação. Por essa razão, as intrigalhadas sobre o Conselho da Revolução e os eventuais conflitos no seu seio eram constantes.

Por essa época, um semanário destacava-se no serviço prestado a essa ala do espetro político. Era pasto constante de recados desse setor, dava guardida aos seus colunistas furibundos e indignados e, claro, prestava-se a fretes políticos constantes. Ah! E vendia jornais, muitos.

Um dia, o tal semanário desse tempo trouxe uma detalhada descrição de uma reunião do Conselho da Revolução, com a discussão em torno de um tema qualquer então na berra. As posições assumidas e o teor das intervenções dos vários membros do órgão eram desenvolvidos no texto com algum detalhe, revelando que a reunião havia sido tensa e dura.

Tudo estaria bem se ... a tal reunião não tivesse sido adiada! O “jornalista” - a peça era da responsabilidade do diretor do periódico - havia inventado a história de A-a-Z, colocando na boca dos membros do Conselho da Revolução coisas que, claro!, eles nunca tinham dito.

Nesse tempo, sem redes sociais e sem televisão que repescasse o assunto, com a imprensa (mesmo a de linhas políticas diferentes) a respeitar um silêncio de compadrio corporativo, aos leitores pouco mais restava do que falar entre si do assunto e esperar por uma eventual “justificação” no número seguinte do semanário. 

E ela veio! O autor, o “jornalista”, explicou, numa nota, que tinha havido um “erro técnico”: de facto, e em termos práticos, a reunião relatada não se tinha realizado. O jornal “concedia” que esse detalhe não tinha sido tomado em devida conta e, com modéstia deontológica, assumia o lapso. Mas o “jornalista” tinha um argumento fortíssimo. É que, como ele explicava na mesma nota, o seu conhecimento detalhado das clivagens que, sobre o assunto, sabia existirem no seio do Conselho da Revolução era tal que ele tinha a certeza de que, houvesse a reunião tido efetivamente lugar, teriam sido exatamente aquelas as posições que nela seriam assumidas pelos intervenientes citados. Estava tudo explicado! 

O autor deste brilhante argumento foi, mais tarde, professor universitário de... “jornalismo”. Nunca cheguei a matar a curiosidade que tinha sobre se a questão do “erro técnico” alguma vez foi por ele abordada nas “aulas”.

sexta-feira, dezembro 29, 2017

Mandatários da República


Um professor que tive no liceu defendia que “uma das grandes medidas do Estado Novo foi pôr cobro ao cancro que eram os partidos da República”. A diabolização dos partidos políticos fazia parte essencial da ideologia do fascismo de paróquia que tomou conta deste país, a partir de 1926. Mesmo o salazarismo envergonhado que foi o marcelismo revelou-se incapaz de aceitar que quem pensasse de forma diferente podia organizar-se e obter mandatos populares para pôr em prática as suas ideias. 

Nunca estranhei assim que os constituintes de 1976 oferecessem aos partidos o quase monopólio da representação política. Por seu intermédio, tentava-se retomar o exercício da democracia interrompido pelo 28 de maio. E quem, senão os partidos clandestinos, havia sustentado, no essencial, a bandeira da liberdade durante a ditadura? 

O regime que hoje temos parece apenas tolerar, com sobranceira benevolência, qualquer expressão política que se afirme fora dos partidos, procurando quase sempre limitá-la. Com isso pretende evitar o caciquismo, que marcou os anteriores modelos constitucionais, pelo que não estimula plataformas de afirmação de personalidades ou de grupos de interesses com poder de influência. A própria leitura do semi-presidencialismo que prevaleceu na revisão constitucional de 1982, afetando os poderes do presidente da República pactuados em 1976, representou uma deliberada menorização daquilo que pudesse não derivar da pura expressão partidária do poder, com legitimidade concorrencial.

Quero com isto dizer que devemos aceitar que os partidos são os “donos” da nossa democracia? Os partidos não esgotam a democracia, mas não há democracia onde não houver partidos - autónomos, livres e contrastantes. Eles são os mandatários essenciais da vontade cívica, do modo como organizamos o Estado para levar à prática políticas públicas maioritariamente sufragadas. Mas não deixa de ser lamentável que os partidos reajam de forma corporativa e conservadora a tudo quanto possa afetar o oligopólio de que dispõem. 

Porque lhes é conferido um poder constitucional único, os partidos têm o dever da absoluta transparência e devem garantir a democraticidade no seu funcionamento interno e no modo como atuam no sistema de representação política. Fraudes como hoje são o MRPP, onde dirigentes não eleitos se locupletam com fundos públicos, ou os Verdes, uma sucursal política do PCP, representam manchas tristes no nosso sistema partidário.

Um escândalo rebentou agora a propósito da fiscalidade dos partidos. Com todas as suas inegáveis disfunções, a nossa democracia sai-nos cara? Sustentar os partidos tem um custo elevado? Talvez tenha, mas a liberdade não tem preço e os partidos são apenas o outro nome da democracia.

(Nota final: este foi o ano da morte de Mário Soares)

quinta-feira, dezembro 28, 2017

Intoxicações

Na madrugada de quinta-feira, olhando na televisão as primeiras páginas dos jornais, deparei com uma notícia no “Público” que tinha a certeza de ser falsa: os nomes de João Soares e de Gabriela Canavilhas, antigos ministros da Cultura, estariam a ser cogitados pelo governo para a presidência da agência de notícias Lusa.

Não tinha falado com ninguém, desconhecia, em absoluto, a questão da futura liderança da Lusa, mas só se o governo de António Costa tivesse ensandecido de uma vez por todas é que, numa conjuntura política como a que vivemos, se atreveria a nomear, para dirigir a agência oficiosa de notícias, um membro do seu grupo parlamentar. Por outro lado, era bizarríssimo que dois antigos ministros da Cultura aceitassem colocar-se sob a tutela de um seu sucessor. E que ele os escolhesse...

Dos primeiros comentários surgidos nas redes sociais sobre a “notícia” depreendeu-se logo o que aí vinha: acusações de instrumentalização política, “jobs for the boys” e coisas assim. As partilhas foram muitas, o Twitter ferveu, o Facebook rugiu. Eu diria mesmo, se tal não fosse um pouco cruel, que se levantou um “panteão noturno de indignação”. Esse era, como é evidente, o objetivo da “notícia”.

Só que (desta vez...) não havia qualquer “panteão”. Gabriela Canavilhas veio a terreiro desmentir a sua indigitação e João Soares, das suas férias cubanas, disse que “nunca ouvira falar de tal possibilidade” nem tal “lhe passara pela cabeça”. Claro! E o governo, horas depois, revelou o nome escolhido para o cargo - naturalmente, um nome do jornalismo.

Quando, finalmente, abri o “Público”, vi que conseguiu encher uma página (!) com esta patética inventona, num texto assinado por uma jornalista que tenho por séria e que terá agora o ensejo de revelar a mentirosa e intriguista “fonte” que lhe passou a “informação”, isto é, escrever em letra de forma o nome da pessoa que a vigarizou e a utilizou, com óbvios desígnios político-partidários. 

É que se David Dinis quer dignificar o nome do “Público” não pode dar ideia de que se deixa instrumentalizar, por “dá cá aquela palha”, só porque está por aí na moda dar pancada no governo. Não é que ele, governo, por vezes, não mereça ou se não ponha a jeito para tal, mas então que isso seja feito com base em verdades indesmentíveis.

quarta-feira, dezembro 27, 2017

O Alto de Espinho




Há dois dias, na Gomes, alguém me disse que tinha vindo do Porto pelo Alto de Espinho. Invejei-o.

O Alto de Espinho é o cume da estrada do Marão que une Amarante a Vila Real. Quando, um dia, o Dr. Ladislau, um bracarense que foi meu excelente professor de Geografia no liceu, me falou pela primeira vez no Khyber Pass, esse lugar mágico da montanhosa fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, consagrado na mitologia da História e na tragédia da política, foi do Alto de Espinho que eu logo me lembrei. O Alto de Espinho é Khyber Pass a que temos direito...

Se Trás-os-Montes fosse independente, os nossos guardas fronteiriços tinham casernas no Alto de Espinho. Antes da construção do IP 4, que facilitou a vida e ofereceu a morte a muitos automobilistas, o Alto de Espinho era “a sério”. Por ali passava uma estrada estreita, marcada por uma placa a-preto-e-branco que separava os distritos de Vila Real e do Porto. A partir dali, qualquer que fosse o destino, era "sempre" a descer, pelo que o Alto de Espinho oferecia, a todos nós, um a sensação de “alívio”.

Para quem, como os vila-realenses, vinha pela terrível e belíssima estrada saída de Amarante - passando por Padronelo (onde se ia pelo pão), Larim, Ansiães e Eido (cuja placa de trânsito teve um dia de ser reduzida para evitar acrescentos inconvenientes de uma letra...) -, a caminho da Pousada (das primeiras do país, hoje passada a patacos pelo grupo Pestana), depois de centenas de curvas, o Alto de Espinho deixava Vila Real “já ali”, a 18 km. 

“Já chegaram ao Alto de Espinho”, dizia-se dos ciclistas, nas etapas que acabavam em Vila Real, na informação colhida na rádio. É que, do Alto de Espinho à cidade, era “um saltinho”, ele era a soleira de Vila Real.

No Alto de Espinho eram recebidas as autoridades que vinham “lá de baixo”, de Lisboa, os presidentes, os ministros e gente assim. Quando o Sport Clube de Vila Real obtinha uma das suas raras “performances” futebolísticas, ia-se ao Alto de Espinho receber a “caravana”. E se a neve caía no Marão, lá iam as televisões filmar, sem imaginação, uns populares de gorro a atirarem bolas uns aos outros, entrevistando de caminho, nesse cenário, um garboso GNR de samarra oficial a recomendar prudência na condução, sempre com discurso de relatório-notícia.

Se a IP 4 já tinha tirado grande parte do “charme” ao Alto de Espinho, o túnel do Marão foi o golpe de misericórdia nessa fronteira natural de Trás-os-Montes, para cá da qual os que cá estão criaram a ilusão poética de mandar alguma coisa.

Amanhã, prometo!, vou passar pelo Alto de Espinho.

terça-feira, dezembro 26, 2017

Nós e a Espanha

Ferreira Fernandes definiu no DN, com sábia simplicidade, a glória de ser português: “De cá é a moça que diz ao pai alentejano: ‘Vou casar’. E depois os dois falam, falam, do trabalho do noivo, se é bom rapaz... E a conversa acaba sem que venha à baila o rapaz ser transmontano”.

Da Gomes e da esquina da Gomes


Sabem o que é a Gomes? É provável que a maioria dos leitores deste espaço não saiba. Tal como acontece em quase todas as cidades, Vila Real tem um local de café de culto. No nosso caso, é a Pastelaria Gomes.

Porquê a Gomes? Porque sim. Historicamente, distinguiu-se sempre da antiga Pompeia, do meu desaparecido amigo Neves, por ser um pouco mais cosmopolita; da Rosas, do sr. Rosas, por ser mais intimista e dispensar as bizarrias do Toninho; do Excelsior, por ser mais elitista, por esconder os bilhares e não ter dominó; do Clube, por não ser habitual por lá ver comerciantes de gado de samarra e cajado; do Imperial, do sr. Lima, por ali não ser hábito ver o patrão a bater nos clientes; da Brasileira, logo em frente, porque, c'os diabos!, o Plácido já não estranhava ver a gente atravessar a rua.

A Gomes começou na vizinha “Gomes velha", nos anos 20 do século do mesmo número, onde me recordo de ver, à porta, o sr. Gomes e em que hoje ainda estaciona essa figura de bem que é o seu filho e meu amigo Tito Gomes. Por lá se vai pelo bolo-rei e pela bola de carne, pelas "cristas de galo", pelos “éclairs” ou, sazonalmente, no S. Brás, pelas "ganchas" e pelos "pitos" (que ideia foi essa de lhes mudarem o recheio?!) de Santa Luzia, embora a concorrência doceira do Lapão seja cada vez mais feroz.

Foi depois construído, nos anos 50, o novo edifício, que teve a imensa novidade de possuir um elevador... que, durante décadas, ninguém viu funcionar. Tinha, no alto, um mastro com uma misteriosa lâmpada que se mantinha acesa enquanto a casa estivesse aberta, pela noite dentro, sinal de que podiam ser servidos, se se apressassem, os "connaisseurs" que viessem do Porto, pela estrada velha, logo que chegados à "curva do espanto", em Arrabães, primeiro lugar de onde, no Marão, se vislumbravam as luzes da cidade.

Se a memória me não falha, a Gomes foi o primeiro café de Vila Real onde as mulheres podiam. com naturalidade, sentar-se sozinhas. Dizia-se, nesses anos, que receber um convite para tomar chá na Gomes ("em cima", sempre em cima) com a dona Irene Viana (mulher do dentista e meu professor de ginástica) era o passaporte para a entrada de uma senhora na sociedade local. E, glória das glórias!, embora poucos se lembrem disso, a parte “social” da Gomes foi talvez o único lugar público do género onde, que me lembre, nunca entrou uma infernal televisão.

Na Gomes, sempre houve zonas geográficas mais ou menos consagradas, que não revelo em detalhe para não identificar alguns dos seus regulares ocupantes. Entre eles, há os que afivelam sempre um ar "grave", tipo “polícia da Régua", que parece fazer parte da condição necessária para serem levados a sério. Outros falam alto, para serem ouvidos nas mesas ao lado, num dispensável, por ineficaz, esforço de proselitismo. Os mais discretos, mas, nem por isso, os menos atentos, ficam-se pela mesa mais misteriosa de todo o café, com dois lugares, que está perto da porta interior, o único poiso onde se consegue ter uma conversa "tête-à-tête", sem risco de penduras.

A disposição física do espaço torna a Gomes uma espécie de plateia de um antigo teatro francês, com o "coté cour" e o "coté jardin" a ser dado pelas entradas - seja pela antiga máquina do fiambre (sede clássica de pouso do meu desaparecido amigo Zé “Foquita” Araújo, de samarra pelos ombros), seja pelo antigo balcão dos "furinhos" dos chocolates, que foi lugar dos jornais com estaca de madeira e onde, durante muito tempo, esteve situado o telefone preto (“chamam ao telefone o senhor...”). Por muito tempo, essas duas entradas do proscénio (o Achilles explicaria o que isso é, mas quem não for doutro tempo de Vila Real sabe lá quem foi o Achilles!) induziam timidez nos visitantes ocasionais, atarantados pelo infalível escrutínio do pessoal sentado no “balcão” ou de costas para as “grades”.

No verão, tirado o vetusto "estrado", a saída para a avenida muda o cenário, que em tempos se prolongava pela esplanada que aí havia, mas com esta agora misteriosamente reduzida ao largo do Pelourinho. Obter por aí um café, em dias de enchente, é um privilégio que obriga a meter cunhas ao Afonso - a alma atenta e sempre simpática do serviço, um pilar da casa cuja dedicação e importância espero que seja bem entendida pela gerência.

Foi pela Gomes que comecei a parar, ainda nos meus tempos de liceu, com mesa marcada "em cima", ao canto esquerdo de quem entra, com o brandy L34 a acompanhar o café, erro que sinto, para sempre, na memória do meu fígado. Por aí passei muitas horas a discutir coisas fúteis da vida e, cada vez mais, da política.

Para as caves da Gomes fui cooptado, ritual de iniciação a que atribuí grande importância, para a visualização de alguns filmes heterodoxos, trazidos da estranja por ousados viajantes locais, sobre cujo conteúdo a moral deste espaço me não deixa elaborar. Foi na Gomes que, com alguns outros, fui, em 1969, interpelado pelo comandante da GNR, por comentários entendidos como "subversivos", que, sem consequências de maior, nos conduziram por algum tempo ao Governo civil.

A Pastelaria Gomes, honra lhe seja!, foi sempre um espaço plural, nunca foi de grandes políticas sectárias, por lá pararam, serenamente, todas as tendências, da “Situação” ou da “Oposição” - e eu estive, ao longo dos tempos, em ambas, e não necessariamente por esta ordem.

Em várias décadas, nunca deixei de "ir à Gomes", nas minhas estadas aperiódicas por Vila Real. Por lá passo, com gosto, em férias, sempre que posso, para rever amigos e conhecidos. E, claro, para comer um covilhete ou uma fatia de bola de carne.

A Gomes dos dias de hoje está diferente da dos velhos tempos. Às vezes, vejo-a um pouco desleixada. O pessoal, embora sempre simpático e educado, tem em alguns casos um estilo profissional “pela rama”, de recrutamento aparentemente errático e excessivamente rotativo. Talvez o defeito seja meu, que venho dos tempos clássicos do João, do "Sapo", do Gonçalo, do Fernando ou do José.

A Gomes é já uma instituição e as instituições têm rituais sem os quais a sua identidade de esvai. Não se lhe pedem grandes mudanças (até se agradece que as não façam), requer-se apenas constância e perseverança na atitude profissional de uma casa que, tendo hoje uma nova frequência e diferente clientela, tem obrigação de conservar as caraterísticas que a qualificaram como a sala de visitas da cidade. Atenção a isto, ó gente da Gomes!

Ontem, dia de Natal, não foi “dia de Gomes”. Mas há um lugar que nunca "fecha" e à volta do qual é a própria cidade que gira. Esse lugar é a esquina da Gomes, um marco geográfico, charneira entre a avenida Carvalho Araújo e o largo do Pelourinho. É que uma coisa é a Gomes, outra coisa é a esquina da Gomes, consagrada como tal por uma placa da confraria dos “Pyjamantes”, um prestigiada tertúlia vila-realense.

Por essa esquina nos encostávamos, na adolescência, para ver sair o "pequename" da missa da Sé, logo em frente. Nos invernos, essa é a sede de ventanias sem par, onde confluem grupos que atiram uns aos outros um indizível "Méixiôres!" (que no vila-realez apressado se transcreve como a saudação "Meus senhores!", enviada de um grupo de passeantes a outro), o que, nesta época natalícia, é logo seguido do clássico "Continuação!", expressão que utilizada até aos Reis.

Por ali se passeiam, nos dias 25 de dezembro e seguintes, com sol ou sem ele, as camisolas-de-losangos e os cachecóis que "saíram" nas prendas de véspera, vestindo amigos e conhecidos, mais ou menos "graves", que, do percurso do liceu ao "cabo-da-vila" (desistam aqui os não-vilarealenses), calcorreiam, devagar, uma memória sedimentada desde a infância ou aprendida por adesão voluntária ao espírito do Marão.

A Gomes e a sua esquina continuam, contra ventos e marés, a ser o lugar geométrico afetivo de Vila Real. Alguns dirão: a Gomes já não é o que era! Eu digo: deixem estar a Gomes como está, conservem-na com carinho e prestarão um inestimável serviço à identidade de Vila Real. Mai’nada!


(Em tempo: este texto recupera partes de um post publicado em 2012)

Recado da mãe

O tornado há horas avistado no Tejo terá sido a primeira reação da mãe natureza quando soube que vai ter por cá um negacionista climático co...